Museus em crise: novas metodologias e dilemas antigos

Relato crítico por Fernanda Lucas Santiago – sobre a Conferência de encerramento do 11º Encontro Paulista de Museus (EPM), cujo conferencista foi o museólogo e prof.º Dr.º Bruno Brulon.

Por Fernanda Lucas Santiago

 

O conferencista Bruno Brulon iniciou elogiando a honestidade dos organizadores do 11º Encontro Paulista de Museus (EPM) em escolher o tema: “Museus, Sociedade e Crise: do luto à luta”. Certamente os efeitos dessa crise são anteriores à pandemia, mas ela se intensificou a partir de março de 2020. O museólogo utilizou a pandemia como metáfora para pensar no sistema museal como um organismo doente. Organizou sua fala em dois momentos:

No primeiro momento apresentou o museu e a museologia como ferramentas para superar as crises sociais. Demonstrou que assim como a Museologia encontra-se doente, ela mesma também pode oferecer antídotos que podem auxiliar a sociedade como um todo a lidar com o sentimento de perda (da vida, de objetos, de sentidos e significados), processos intensificados pela pandemia. Citou como exemplo os museus criados no pós 2ª Guerra Mundial e durante o processo de libertação dos países africanos, onde a importância da função social dos museus foi fundamental na reconstrução histórica e cultural dos estados nacionais devastados.

No segundo momento, discutiu as diversas dimensões dessa crise que são de ordem epistemológica, estrutural, econômica, social e sanitária. Apresentou os principais marcos acadêmicos e políticos na área da museologia, como a Mesa-Redonda em Santiago no Chile em 1972, onde foi discutido os principais desafios dos museus na América Latina, embora pense que as propostas que surgiram lá não avançaram no plano concreto. Assim como a concepção de Ecomuseus do francês Hugues de Varine, que forneceu base para a criação de formas alternativas de museus (marginais, comunitários, sociais, experimentais e populares), mas que em alguns casos esses novos espaços acabaram reificando o lugar do subalterno. Apresentou como ponto positivo da nova museologia a denúncia do caráter eurocêntrico dos museus embora, observe que foi mantido o paradigma ontológico da separação sujeito/objeto, pensamento/realidade material, ou seja, se há um sujeito universal, do outro lado há o objeto que esse sujeito pretende dominar. A crítica ao sujeito universal está sendo feita há décadas por diversos pesquisadores como Waldisa Rússio e Ramon Grosfoguel, incluo nessa lista ainda Joana Flores, Giane Vargas Escobar, Delton Aparecido Felipe, Otair Fernandes de Oliveira, pesquisadores que apresentaram no XI Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as[1]os desafios metodológicos da criação de narrativas expográficas que consideram o protagonismo negro; o processo de tombamento e transformação de alguns Clubes Sociais Negros em museus; o reconhecimento dos terreiros de matriz africana como patrimônio imaterial.

 

Fachada Sociedade Cutural Ferov

Fachada da Sociedade Cultural Ferroviária Treze de Maio – Museu Treze de Maio, Santa Maria/RS. Foto: Giane Vargas Escobar, 2007[2]

 

Dando continuidade a metáfora da pandemia, Bruno Brulon indicou 5 sintomas da crise dos museus:

1º Sintoma: A aparente fluidez da matéria

A manutenção da agenda neoliberal tem impedido a concretização do projeto de descolonização dos museus. É inconciliável servir às grandes corporações e ao mesmo tempo discutir projetos em prol da descolonização. O capitalismo produz uma materialidade pautada na colonialidade, reforçando as hierarquias sociais e, portanto, inconciliável com a decolonialidade. Por outro lado, nenhum museu consegue realizar o trabalho de preservação, conservação e manutenção do patrimônio sem recursos financeiros. Como manter a perenidade do patrimônio num momento de fluxo neoliberal? Nesse ponto, é imprescindível que o estado brasileiro assuma sua responsabilidade para com o patrimônio da nação, destinando recursos financeiros de maneira que o sistema museal não fique tão dependente das dinâmicas neoliberais que aprofundam sua precarização.

2º Sintoma: A fragmentação da matéria

Trata-se do risco da perda de materialidade dos museus. Sob o argumento da democratização do acesso têm surgido projetos que pretendem transferir os museus para o espaço virtual; essa mudança tem servido a uma demanda neoliberal de desmantelamento dos museus. Essa estratégia visa evitar aprofundar o debate sobre a complexidade da gestão dos museus e da responsabilidade do estado sobre sua manutenção econômica. Brulon fez críticas às interrupções e reduções no pagamento dos salários de funcionários do setor educativo e cultural, sobretudo dos museus. Além das demissões e dos cortes de verbas que impossibilitaram a continuidade de projetos. Essas situações concretas explicitaram a urgência de refletir sobre as relações dos museus com o capitalismo. E o lugar das tecnologias digitais.

Transferir os museus para o espaço digital não vai eliminar por si só a desigualdade social do público. Afinal, quem tem acesso à internet? Quais tipos de modelo de comunicação e linguagem serão utilizados? Que tipo de público os museus virtuais pretendem alcançar? Qual o papel social dos museus? Como será a organização deste espaço virtual? O trabalho dos museólogos e funcionários de museus estarão assegurados neste novo modelo? Será que este novo modelo não iria descaracterizar os processos de formação de matéria e de significados?

No entanto, o uso das tecnologias digitais não podem ser descartadas, sobretudo nesse momento pandêmico em que o meio virtual tornou-se um espaço seguro do ponto de vista da saúde pública. Inclusive, o 11º EPM, assim como diversos outros eventos acadêmicos e culturais, só puderam manter sua agenda por causa da existência do espaço virtual. Só tivemos acesso à fala do conferencista devido a esse recurso, mesmo assim ele alertou-nos sobre o risco de acreditar que a criação do espaço virtual possa substituir a materialidade dos museus.

Na contramão do desmantelamento do espaço físico pelo meio virtual, a tecnologia está possibilitando a realização do Museus Afro Brasil-Sul (MAB-SUL), um museu virtual que visa criar um acervo sobre a História e Cultura de afro-brasileira da região sul, projeto de extensão idealizado pela professora Dr.ª Rosemar Lemos vinculado a Universidade Federal de Pelotas (UFPEL). Nesse caso, a proposta surgiu da ausência de um espaço físico com acervo e exposições sobre essa temática. Apesar da população negra representar 54%[3] da população brasileira, as exposições museológicas não tem atendido a essa demanda.

3º sintoma da crise dos museus: A precariedade da matéria

O incêndio no Museu Nacional do Rio de Janeiro é o grande exemplo do desmonte do setor cultural. Mesmo sendo um cenário catastrófico, Brulon apontou como ponto positivo o engajamento político dos museólogos e funcionários dos museus na defesa das causas museológicas. Esses profissionais aprofundaram a reflexão com relação aos problemas estruturais, a função social, os modelos de gestão, a valorização da área da pesquisa nos museus.

museu nacional queimando

Em 02 de setembro de 2018, Museu Nacional é consumido pelas chamas; fundado em 1818, era o museu mais antigo do Brasil Foto: Uanderson Fernandes / Agência O Globo[4]

4º sintoma: Crise de identidade dos Museus

Qual a função dos museus no século XXI? A dificuldade de formular novos conceitos que abarque os conflitos atuais. Segundo o museólogo Bruno Brulon, não há consenso entre os pesquisadores da área nem mesmo sobre as funções básicas que os museus devem desempenhar.

Os museus são instituições criadas no século XIX, a concepção de patrimônio, de acervo e de exposição também, em alguns casos há uma relutância por parte dos museólogos em atualizar a metodologia e acabam reproduzindo no século XXI narrativas racistas, que excluem a população negra e indígena, ou retratam essas populações como subalternas, evidenciando o paternalismo institucional. “A museologia e os museus fazem parte de uma engrenagem patrimonial”, trabalham com os processos de materialização, produção de matéria e a produção simbólica dos sentidos. Os museus dão sentido à matéria e à ausência dela. A materialização no espaço museal também reflete a materialização no âmbito da sociedade. Falar “vidas negras importam é o mesmo que vidas negras tem matéria.” O desafio é realizar a atualização das narrativas museais de maneira que a identidade nacional seja apresentada com dignidade, no que tange a diversidade racial que constitui a população brasileira. Com relação a esse giro epistemológico, a pesquisa de mestrado de Joana Flores[5] analisou a construção da narrativa expográfica de sete museus baianos e apresentou possibilidades de interpretação e narrativas em que as mulheres negras são apresentadas para além da figura da escravizada. Sobre a construção de narrativas outras, é válido ouvir as falas da pesquisadora Josileia Kaingang e pesquisadores Gerson Menezes, Gersem Baniwa, Paka Massanga entre outros que participaram do I Encontro Pós Colonial e Decolonial “Diálogos sensíveis: produção e circulação de saberes diversos”, reunidos no podcast “Sobre História”[6].

5º sintoma: Descrença na matéria e desmaterialização do museu

A descrença nas instituições museais e no patrimônio tem a ver com a falta de identificação com as narrativas apresentadas. O público não se identifica com as exposições museológicas. Esse último sintoma exige dos museólogos um maior comprometimento com a relevância social de seu trabalho, a necessidade de realizarem pesquisa dos acervos, de montarem exposições que dialoguem com o público, de exigir do Estado a defesa do museu e do patrimônio. Os museus devem servir a formação cidadã, devem assegurar o direito à memória de todos os grupos sociais. Faz-se necessário estabelecer novas relações com o passado, a partir das reflexões sobre as relações vividas no presente. “Os museus devem fazer da vida sua matéria.”

 



[1] ESCOBAR, Giane; FELIPE, Delton; FLORES, Joana; OLIVEIRA, Otair. Mesa-Redonda Patrimônio Cultural negro no Brasil: Memórias, Lugares e Tradições.  In: CONGRESSO BRASILEIRO DE PESQUISADORES/AS NEGROS/AS, 11; 2020, Curitiba. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=akpxM7y8YZM Acesso em: 11 dez. 2020.

[2] ESCOBAR, Giane Vargas. Clubes Sociais Negros: Lugares de Memória, Resistência negra, Patrimônio e Potencial. Dissertação em Patrimônio Cultural UFSM, Santa Maria – RS 2010.

[3] SARAIVA, Adriana. População chega a 205,5 milhões, com menos brancos e com mais pardos e pretos. Agência IBGE Notícias. Rio de Janeiro, 24 nov 2017. Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/18282-populacao-chega-a-205-5-milhoes-com-menos-brancos-e-mais-pardos-e-pretos Acesso em: 11 dez. 2020.

[4] ‘Tragédia no Museu Nacional poderia ter sido evitada’, diz ministro da Cultura. O Globo. Rio de Janeiro, 02 set. 2018. Disponível em: https://oglobo.globo.com/rio/tragedia-no-museu-nacional-poderia-ter-sido-evitada-diz-ministro-da-cultura-23032915 Acesso em: 11 dez. 2020.

[5] SILVA, Joana A. F.. Mulheres negras e museus de Salvador: Diálogos em branco e preto. Salvador: IPAC-SECULT, Edufba, 2017.

[6] AYACAST 1: Sobre Histórias. [Locução de]: Vinícius Pinto Gomes e Siméia de Mello Araújo. Aya Laboratórios de Estudos Pós-Coloniais e Decoloniais, Alô Podcast, Emitai Produções. 2020. Podcast. Disponível em: https://ayalaboratorio.com/2020/11/04/lancamento-do-ayacast-podcast-do-aya-episodio-01-sobre-historias/?fbclid=IwAR27-BeC60b1gqQfKmfysU5FwLTru5JcVkRs-Fin3g18UadsdWV2ary9Z0Q Acesso em: 11 dez. 2020.