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Museus e a afirmação de identidades: entre o local e o global

Marilúcia Bottallo Relato crítico síntese do 8º Encontro Paulista de Museus: “Redes e Sistemas de Museus: Ações Colaborativas”

Marilúcia Bottallo - 2021

 

Relato crítico síntese do 8º Encontro Paulista de Museus: “Redes e Sistemas de Museus: Ações Colaborativas”

Este relato faz parte do livro: Panorama Reflexivo 11 anos de Encontro Paulista de Museus

Sumário Panorama Reflexivo 11 anos de Encontro Paulista de Museus Encontro Paulista de Museus

 

2016, ano do 8º Encontro Paulista de Museus, foi marcado por uma série de eventos de alcance global, seja no cenário nacional ou no mundial. Por meio de nossos sistemas de comunicação em rede, já singularizados por forte influência das redes sociais, assistimos jornais, revistas, emissoras de TV e rádio, “tradicionais” na comunicação de massa perdendo espaço para formas inovadoras feitas a partir da produção e edição pessoal de eventos em uma série de mídias, sistemas e plataformas rapidamente assimilados ao nosso cotidiano.

Se as notícias que nos deixaram perplexos, nos foram pautadas pelos editoriais das grandes redes, e a revisão crítica de seus conteúdos passou a se fazer, praticamente, em tempo real e por meio de redes paralelas.

Em 2016, o enorme número de atentados terroristas ocorridos na Europa e no Oriente Médio, a saída do Reino Unido da União Europeia, a eleição de Trump nos Estados Unidos, o avanço do Zika, que atingira, até então, 4 milhões de pessoas, o escândalo do Panamá Papers, o acordo das nações pelo desaceleramento do aquecimento global e a morte de Fidel Castro, paralelos ao impeachment da Presidenta Dilma Rousseff, as eleições municipais que testemunharam o crescimento da direita, os Jogos Olímpicos realizados na cidade do Rio de Janeiro, que expuseram a fragilidade de estruturas políticas e econômicas do país que passa a ser governado por seu vice-presidente e o movimento de ocupação de escolas públicas se posicionando contra a PEC do teto de gastos dos governos estaduais e o projeto Escola sem Partido, foram alguns dos tópicos mais comentados pelas agendas dos meios de comunicação oficiais seguidos de um sem-número de reavaliações críticas feitas por indivíduos conectados às redes sociais em processos que visavam, seja um registro do presente, seja a descoberta de que estar conectado em tempo real também pode ser uma arma contra arbitrariedades ou, ainda, a necessidade de se fazer ouvir em meio ao caos informacional.

Nesse embate entre o global e o local, o público e o privado, vemos os museus e seus representantes protagonizando a importância da discussão sobre a ação em rede. O 8º Encontro Paulista de Museus, iniciativa do Sistema Estadual de Museus, definiu como tema daquele ano “Redes e sistemas de museus: ações colaborativas”. A própria ideia de um sistema de museus, discutida, formatada e levada a cabo no Estado de São Paulo 30 anos antes, já apontava para a importância de, por meio do estabelecimento de redes, pensar sobre distintas formas de gestão do patrimônio que pudessem ampliar sua significação e usufruto da população, entendendo o patrimônio preservado como possibilidade de capital cultural incorporando ao seu papel a responsabilidade educativa. Mas, também, buscando pensar algumas ações de cunho pragmático: como implementar programas, ações, sistemas, estreitar laços, encontrar parceiros, manter as coleções, criar novos recursos expositivos, resolver problemas cotidianos, entre outras iniciativas. Ao longo desse 8º encontro, o Sisem-SP, além de comemorar seus 30 anos de ação ininterrupta, apresentou outra iniciativa integradora: o Cadastro Estadual de Museus de São Paulo, entendido como uma ferramenta de sistematização que viesse a conhecer mais amplamente os museus do estado.

Ao tratar de “Redes e sistemas de museus: ações colaborativas”, o 8º EPM, acompanhando os interesses do momento, acabou por fazer uma série de projeções de futuro ao avançar no fortalecimento da importância dos sistemas de cooperação que deram às redes, que começavam a proliferar e se fortalecer nos museus, um estatuto de interesse pragmático e conceitual. A programação do encontro, desde sua cerimônia de abertura, passando pelas apresentações e painéis, conseguiram trazer uma articulação muito clara entre os grandes temas debatidos mundialmente e sua reverberação nas ações de museus locais e suas necessárias e importantes particularidades. A ideia de rede se espelhou, inclusive, na maneira como foi proposta a programação do encontro que optou por ocupar distintas instituições, permitindo maior circulação do grande número de participantes entre alguns dos vários locais de interesse cultural da cidade.

Os temas principais privilegiaram discussões em torno de redes de operação, articulação entre museus e comunidade, além de painéis temáticos que pensaram temas caros e basilares do universo museológico, tais como comunicação e serviços ao público, salvaguarda de acervos, gestão e governança e infraestrutura e edificações. Além disso, uma mesa com representantes regionais teve como mote “uma visão do futuro”.

Alguns palestrantes estrangeiros, como Hugues de Varine-Bohan – referência conceitual de várias gerações de profissionais do patrimônio – , Edmon Castel, John Orna-Ornstein, Mathieu Viau-Courville e Sharon Heal, bem como os brasileiros Danilo Miranda e Mario Chagas, acentuaram a importância dos museus como vetores essenciais na relação entre o global e o local. Desde o apoio a programas até a experiência de abertura para o reconhecimento das distintas necessidades dos seus grupos de relacionamento, os processos e programas museológicos foram entendidos como transformadores potenciais das realidades das comunidades.

A ideia da potência dos museus apresentada em distintas falas os focou como espaços de exercício da cidadania e, com o surgimento de novas tipologias museológicas, trouxe a possibilidade da inclusão de novos públicos a quem os museus buscam incorporar no processo de construção institucional. As apresentações e os debates levaram à reflexão sobre os museus como locais de possiblidade do pensamento crítico e da ação, portanto como espaços relacionais e não apenas de acumulação colecionista. Um dos agenciamentos expostos durante a apresentação de Mario Chagas[1] trouxe, por meio de um vídeo, a demanda dos moradores da Vila Autódromo, comunidade que foi removida para a instalação da vila olímpica na cidade do Rio de Janeiro, que tratou da criação do Museu das Remoções no local onde havia a vila. A estratégia do grupo foi propor que a vila se transformasse em museu a céu aberto proposto como local para discussão sobre o que é memória e do que são remoções, num claro embate político com a determinação de retirada dos moradores feita pelas autoridades instituídas. Por sua vez, Mathieu Viau-Courville[2], por meio de um projeto que envolve dança, propôs uma reflexão sobre como favorecer a participação cidadã nos museus. Para tal demanda ele responde a partir do conceito de coconstrução, pois, segundo ele, esse é um meio de garantir a voz da comunidade e, além disso, é um modo de representação do patrimônio. Viau-Courville ressalta que o patrimônio não é uma coisa, tampouco um evento intangível, mas uma representação ou um processo cultural baseado em ações e valores que se pretende destacar. Hugues de Varine-Bohan[3], em palestra remota, enfatiza a relação dos museus com o desenvolvimento local, em particular aquele que se dá por agenciamentos patrimoniais, culturais e ambientais. Para ele, o museu tem que organizar-se para representar as forças e as dinâmicas da população e responder às suas demandas. Para isso, precisa de uma governança jurídica e de operacionalização que visem representar as opiniões e escolhas dos parceiros das comunidades, entendidas como herdeiras e usuárias do patrimônio. Porém, ele ressalta a importância da inclusão das autoridades públicas e de todo o tecido social do desenvolvimento local no processo entre outros atores sociais e, até mesmo, os atores econômicos. Sublinha que o museu é uma instituição global que tem uma dimensão cultural, social e econômica.

Com tais ponderações, pode-se ter uma ideia de como a questão das redes foi entendida para além de uma dimensão tecnológica como ferramenta, mas, antes disso, como uma possibilidade concreta de agenciamentos humanos, tendo o museu e suas ações concretas como uma instituição que permite que o patrimônio e a memória sejam compreendidos como recursos disponíveis na qualificação dos distintos grupos que ali atuam. A ideia de construção conjunta no museu toma importância, incluídos o processo de salvaguarda patrimonial e o de governança, que, em suas bases, não se descolam de tais princípios. Os painéis temáticos, que abordaram temas que trataram desde a preocupação com o público até questões de gestão de coleções e gestão institucional, não se furtaram de pensar, também, a relação com seus públicos de interesse e com métodos de incorporação de distintas falas.

O 8º EPM, nesse sentido, trouxe discussões extremamente ricas e atuais e que continuam na pauta das ações dos museus na contemporaneidade, colocando tais experiências em consonância com um espírito de época que visa a integração como forma de promoção das culturas locais. Por outro lado, não se descarta a necessária relação com o universo globalizado para que, nesse embate entre o global e o local, seja possível, a construção de identidades positivas. Encontros como esse, que reúnem mais de mil pessoas para pensar sobre o papel dos museus e que resultam em discussões vigorosas, reiteram, a meu ver, o papel orgânico que os museus continuam a cumprir na sociedade e que reforçam suas funções cultural, educativa e social, fundamentais nas distintas comunidades associadas via redes. A própria ideia de rede, como apontado por Cassio Martinho[4], na qual se associa o conceito dos seis graus de separação, segundo ele, é importante para enxergar a potencialidade de cada ponto, já que o mesmo ponto geralmente pertence a diversas redes nas quais ocupa lugares distintos, de acordo com as suas relações. Assim, por trás de cada ponto existe uma rede oculta que pode ser acessada dependendo do fluxo de informações.

Museus e rede ou museus em rede faz sentido pela própria natureza transdisciplinar da ação museológica e se relaciona diretamente com seus objetivos mais acalentados no mundo contemporâneo: a inclusão e a qualificação das interações que se dão nesse espaço fundamental de mediação.


 



[1] Referências a partir do vídeo de registro do painel “Articulando museus e comunidades”. Link de acesso: https://www.youtube.com/watch?v=6BPyh8I2wfI.

[2] Referências a partir do vídeo de registro do painel “Articulando museus e comunidades”. Link de acesso: https://www.youtube.com/watch?v=6BPyh8I2wfI.

[3] Referências a partir do vídeo de registro do painel “Articulando museus e comunidades”. Link de acesso: https://www.youtube.com/watch?v=bDCGEL6StVc.

[4] Referências a partir do vídeo de registro do painel “Articulando museus e comunidades”. Link de acesso: https://www.youtube.com/watch?v=oXi-cDaEFxs.