Por uma inacessibilidade mais implacável
Relato por Carlos Eduardo Riccioppo
Coordenadoria dos relatos por Beto Shwafaty
Ao primeiro passo que dou na direção das belas coisas, retiram-me a bengala, um aviso me proíbe de fumar[1].
Só está livre do mal tão bem diagnosticado por Valéry aquele que junto com a bengala e o guarda-chuva também entregou, na entrada, a sua ingenuidade[2].
Esquece-se, com frequência, a vontade radical de liberdade que animou a reivindicação l'art pour l'art desde o começo do século XIX. Dizia Théophile Gautier:
“Para que serve a música? Para que serve a pintura? Quem seria louco de preferir Mozart ao Sr. Carrel, e Michelangelo ao inventor da mostarda branca? É verdadeiramente belo apenas aquilo que não pode servir para nada; tudo o que é útil é feio, pois é a expressão de alguma necessidade, e aquelas dos homens são ignóbeis e repugnantes, como sua pobre e enferma natureza. – O local mais útil de uma casa são as latrinas”[1].
Sem dúvida, há algo de torturante no sem número de defesas que se fizeram à autonomia da arte do século XIX para cá. O mal-estar de algumas delas levando diretamente a uma impressão tão insuportável de inacessibilidade, que fez com que fossem compreendidas como marcas ferozes de distinção de classe, senão como um profundo eurocentrismo ou “euro-norte-americano-centrismo”, uma inevitável apoteose da “alta cultura” – a arte reduzida a uma espécie de seita que só admitiria como iniciados os pertencentes a uma parcela exclusiva da sociedade, e cujo templo, igualmente hierarquizado, haveria de ser o museu[2].
Passadas já algumas boas décadas desde que a experiência moderna do século XX foi submetida a uma crítica severa, pelo menos desde a década de 1980, com todas as denúncias que correntes absolutamente distintas interpolaram a essa arte marcada por uma vontade de autonomia, já não é mais possível, hoje, agir em nome do confronto com uma “autonomia genérica” da arte – a não ser que se pretenda defender o ponto de vista de uma “ingenuidade” cada vez mais inadmissível, uma que se queira inconsciente dos debates (e da importância) da própria esfera da arte, e que pretenda ver, nesses debates, qualquer coisa que não importe mais na situação contemporânea (o que poderia ter algo de radical, não fosse o fato de que, como diz Otilia Arantes, estamos diante de um novo cenário, marcado por “essa inédita centralidade da cultura na reprodução do mundo capitalista, na qual o papel de equipamentos culturais, museus a frente, está se tornando por sua vez igualmente decisivo”[3]).
Na melhor das hipóteses, esse partido pela “ingenuidade” terá drenado, da vontade de autonomia que a arte apresenta pelo menos no último século e meio, toda e qualquer validade, e, por consequência, terá desviado, para sua própria plataforma de “ação”, as instituições que uma vez permitiram àquela autonomia se fazer evidente, mas sempre e somente ao passo que podia ser colocada em xeque, como é o caso dos museus de arte.
Toda crítica às promessas da modernidade segue bem vinda para se pensar a situação contemporânea; mas, no caso dos museus de arte, uma das acusações que subjazem à reivindicação de torná-lo acessível a um público cada vez mais amplo – quer dizer, a de que eles sejam por natureza elitistas – merece revisão ainda mais urgente. Tais acusações partem do esquecimento de que o museu nasce como uma exigência de fundar uma instância pública da experiência da arte na modernidade.
A esse respeito, valeria observar a promessa que carregavam as exposições abertas da Academia Real ao público francês, que se intensificavam a partir de meados do século XVIII, como se pode atestar num comentário de Philibert Orry, de 1737, publicado no Mercure de France:
“A Academia faz bem em de algum modo prestar contas ao público de seu trabalho e em tornar conhecido o progresso alcançado nas artes que ela fomenta, trazendo à luz as obras de seus membros mais ilustres nos diversos gêneros que ela compreende, para que desse modo cada um se submeta ao julgamento de pessoas informadas, reunidas em maior quantidade possível, e receba os elogios e condenações que lhe cabe. Isto incentivará talentos genuínos e desmascarará as falsas famas daqueles que têm progredido demasiado pouco em sua arte, mas que, cheios de orgulho em suas companhias ilustres, compreendem a si mesmos tão automaticamente capazes quanto seus pares e negligenciam sua vocação”[4].
É claro que, naquele momento, ainda não se haviam definido as instituições que nos chegam à atualidade como museus de arte; mas seu princípio embrionário, os salões, iam definindo sua vocação pública, ou, antes, a vocação de uma instância de debate público da arte que viria a sedimentar a existência do museu – “É apenas nas bocas daqueles homens firmes e justos que compõem o Público, que não possuem qualquer relação com os artistas (…) que podemos encontrar a linguagem da verdade”, escrevia La Font de Saint-Yenne[5] no fim da década de 1750, o primeiro crítico a propor que um museu se estabelecesse no edifício do Louvre (o que ocorrerá na década de 1790).
Não se pretende, com isso, delinear uma imagem do museu de arte como instância livre de tensões. Ao contrário, deve-se lembrar que a reivindicação por um espaço público, qualquer que seja ele, é sempre uma reivindicação que se origina em uma tensão social e que a arrasta consigo, exatamente a tensão que se pode bem observar num comentário como o que fazia Pidansat de Mairobert acerca de sua chegada a uma exposição no mesmo Louvre, ainda em 1777:
“Deve-se acrescentar apenas que se sobe por uma escadaria que se parece com um alçapão e que, embora bastante larga, é sempre ingurgitada: ao sair dessa luta penosa, não se respira sem se encontrar imerso em uma golfada de calor, em um turbilhão de poeira, em um ar infecto, que, impregnado das exalações de diferentes indivíduos, com frequência muito insalubres, deve, eventualmente, disseminar ou causar praga, atordoando-se finalmente por um zumbido contínuo, como o bramido das ondas de um mar revolto. De resto, essa mistura (…) de todas as classes, de todos os sexos, de todas as idades (…) é para um inglês uma visão adorável. Este talvez seja o único lugar público onde se possa encontrar, na França, a imagem dessa liberdade preciosa que se oferece por toda parte em Londres, espetáculo encantador, e que a mim agrada mais do que as obras-primas espalhadas nesse templo das artes. Aqui, o Savoyard [trabalhador não qualificado, figura popular] se acotovela impunemente com o nobre em seu cordon bleu; a esposa do peixeiro troca seu perfume com aquele da dama de qualidade, fazendo-a com frequência tapar o nariz para fugir do forte cheiro de conhaque que aquela exala; o artesão tosco, guiado somente por seu instinto, lança um comentário justo, que, por conta do modo cômico com que é pronunciado, faz rir ao seu lado o espírito ilustrado, enquanto o artista, escondido no meio da multidão, capta seu significado e o utiliza em seu favor[6].
Quer dizer: o museu nasce de uma reivindicação de uma instância pública do debate da arte, e, por isso mesmo, ele nasce constituído por todas as tensões que permeiam a própria definição dessa nova noção de público, aí incluídas todas as tensões de classe que compõem essa esfera. O que não significa, em absoluto, dizer que se tratou, desde sempre, de uma instituição elitista – muito ao contrário, ele surge em uma atmosfera de pressão social profunda, que diz respeito ao destino da própria arte a ser nele exibida; esta mesma arte que vai se desligando da jurisdição da Academia e passando ao escrutínio daquela mesma esfera pública, ou que vai ser motivo de disputa pelos interesses absolutamente diversos que a compõem. O museu não nasce, enfim, como templo da “alta” arte, mas constitui-se de saída como uma pergunta a respeito de quem compõe seu público. Ou, dito de outro modo, o museu assinala a emergência de uma arte que não sabe para quem exatamente ela é feita; é um marco no processo histórico que define uma imensa autonomia para a arte, mas que também a abandona à própria sorte.
A última questão merece maior atenção. Uma arte que se vai reconhecendo autônoma só surge historicamente no momento em que se vê desamparada da longa lista de jurisdições que a coordenaram – da religião à corte, e, desta, à Academia. O princípio de uma arte autônoma, que possui suas próprias regras, desinvestida de obrigações de função relacionadas à religião, ao cerimonial de corte e ao oficialismo das academias, tal princípio é sua imersão na esfera pública. Não existe, simplesmente, qualquer contradição entre uma arte autônoma e uma arte acessível publicamente. Antes, um termo implica o outro – a arte pensa sobre sua autonomia quando ela se pensa coisa pública; quando, exatamente, seu lugar de produção deixa de ser o castelo, as dependências reais das academias, e passa a ser o domínio sem garantias ou privilégios do ateliê.
O processo histórico que desliga a arte da academia, portanto, dá origem à bem conhecida aventura da arte na modernidade: uma atividade marcada por um sentido profundo de liberdade, mas, também, e de modo indissociável, uma empreitada sem qualquer garantia, sem qualquer necessidade aparente, sem qualquer resposta.
Quanto ao museu, se ele surge daquela mesma utopia iluminista de um espaço público no final do século XVIII, no final do século seguinte ele mostra sua face fúnebre: trata-se do local de debate da arte por um público anônimo, mas o preço disso é que seja também o local onde a cultura se patrimonializa, apresenta-se drenada de qualquer vivacidade – “De fato, creio que nem o Egito, nem a China, nem a Grécia, que foram sábios e refinados, conheceram tal sistema de justapor produções que se devoram umas às outras. Nenhum deles dispunha unidades de prazer incompatíveis sob números de registro e segundo princípios abstratos”, diz o mesmo Paul Valéry que sentenciará, a respeito do Louvre: “Não importa o quão vasto, equipado e bem ordenado seja o palácio – nos encontramos sempre um pouco perdidos nessas galerias, sozinhos contra tanta arte”[7].
É simplesmente enganoso tomar o museu por um espaço de bem-estar, assim como é enganoso tomar a atividade artística como prazerosa. A arte que a modernidade auspicia é toda entrecortada por essa fratura constitutiva, de ser um lugar onde a faculdade da imaginação pode operar em toda sua potência, mas ao mesmo tempo uma atividade que não sabe a que se destina (a que público, a que local, a que fim).
Neste ponto, aliás, vale denunciar a fraqueza do argumento que julgue ser o museu o destino seguro dessa arte; porque o museu não é, jamais foi o lugar onde a arte realiza seu destino, mas onde, para continuar com Valéry, “(...) o olho, na abertura de seu ângulo móvel e no instante da percepção está obrigado a admitir um retrato e uma marinha, uma cozinha e um triunfo, personagens em estados e dimensões os mais diversos; e mais, deve acolher no mesmo olhar harmonias e maneiras de pintar incomparáveis entre si”[8].
Desde o seu surgimento, o museu é lugar de conflito, de uma experiência torturante que, se possui alguma validade, esta reside em que não seja capaz de aplacar a boa dose de dificuldade ou de autorreflexividade que possuem as próprias obras que ele ostenta. “É verdade (…) que os museus exigem expressamente algo que já é propriamente exigido por toda obra de arte: algum esforço por parte do observador” – diz Adorno, em texto que compara os comentários de Valéry e de Proust acerca do museu de arte; e, continuando – “A única relação concebível com a arte, em nossa realidade catastrófica, seria a que considerasse as obras de arte com a mesma seriedade mortal que tem caracterizado o mundo de hoje. Só está livre do mal tão bem diagnosticado por Valéry aquele que junto com a bengala e o guarda-chuva também entregou, na entrada, a sua ingenuidade”[9].
É preciso duvidar dos discursos que pensam o museu como o local em que uma promessa do bem-estar social (promessa, aliás, cuja procedência precisa ser explicitada) poderia ser cumprida, no mínimo, porque jamais o museu de arte figurou como instância adocicada da sociabilidade, devolvendo sua importância pública em forma de contrapartida à segregação social. Ao contrário, tanto faz se “privilegiado” ou “despossuído”, o público do museu de arte não goza de bem-estar, não resolve as suas diferenças porque desfruta de um mesmo quadro. Deve-se, pelo menos, aventar a possibilidade, ainda que como medida utópica, de que o museu resguarde uma aversão, qualquer que seja, ao apaziguamento das tensões sociais. Se nele tais tensões se tornam claras, evidentes, isto indica não que ele possa ser uma estufa de temperatura e pressão estáveis, mas, isto sim, que nele ainda seja possível reconhecer o convite à lida com as dimensões mais ou menos torturantes da experiência – a social incluída.
Talvez seja ainda difícil escapar daquele clichê tantas vezes repetido ao longo do século XX, de que a arte seria uma daquelas atividades humanas encerradas num castelo de cristal, cujas chaves estariam em posse de um pequeníssimo grupo de abastados, únicos privilegiados a usufruírem desse prazer espiritual. Autonomia, prazer e privilégio são, mesmo, termos de forte atração; mas é tempo de proceder a uma análise desses termos que permita escapar à generalização; ou, mais do que isso, que permita escapar às promessas insidiosas que daí decorrem, como aquela que sugere que o acesso garantido à obra de arte seja suficiente para democratizar a felicidade.
Desconfia-se de que, na defesa de determinadas ações capazes de fazer do museu de arte um exemplo de instância pública onde as tensões sociais terão sido tratadas, resida o maior dos enganos, que é o de pressupor que a arte corresponda sempre a algo positivo, que sua apreciação derive em felicidade, como se disse; esta crença improvável de que a arte possua uma tarefa edificante leva a que se conquiste não uma verdadeira democratização da arte em salvaguarda nos museus (aquela com a qual se incomoda), mas a que se aplauda a um programa de defesa de um determinado tipo de arte que pareça “boa”, programa que provavelmente corresponda, hoje, a qualquer espécie de forma colorida, mas ao mesmo tempo tátil, e também “participativa”, quando não convidativa a qualquer histeria ou celebração coletiva de acolhimento ao visitante.
Não é que o prazer da arte seja em si mesmo impossível. O mesmo Adorno sentenciava, a respeito de Valéry e de Proust: “Para quem está próximo às obras de arte, estas representam objetos de encanto tanto quanto a própria respiração”; ou, então: “Os dois franceses, que não apenas produzem, mas ainda refletem incessantemente sobre a própria produção, estão (…) completamente certos do prazer que as obras de arte proporcionam aos que a veem de fora”[10].
Mas, exatamente o que Adorno acusa nos dois escritores é a familiaridade excessiva às obras, sua falta de distância, de incômodo com a arte, o que o leva a afirmar : “Mas somente onde reina aquela distância sólida entre as obras de arte e o observador, distância que permite o prazer, pode surgir a pergunta sobre o que está vivo e morto nas obras de arte. Quem se sente em casa na obra de arte, em vez de visitá-la, dificilmente faria essa pergunta”[11].
Tal distância é o contrário do programa edificante em nome do acesso à arte; ela é própria aos museus, assim como é própria à arte – seu caráter torturante é, para bem ou para mal, aquilo que garante um mínimo de posicionamento crítico frente ao processo violento que resgata do fluxo da vida este ou aquele objeto da cultura, eleito a se tornar patrimônio; ou, é claro, diante da estranha autonomia que possuem as obras que formam seu acervo, a indagar “o que nelas está vivo ou morto” (“os museus exigem expressamente algo que já é propriamente exigido por toda obra de arte: algum esforço por parte do observador” – para repetir a afirmação de Adorno).
Se é possível dizer que a revindicação de uma maior acessibilidade aos museus, do modo como vem sendo colocada, disfarça uma concepção de arte que seria acessível em si mesma (como se a arte pudesse responder macia e saborosa às urgências de quem a confronte sem se confundir com o consumo de uma guloseima), talvez não seja muito excessivo concluir que o que esteja em jogo seja uma crença (problemática porém desesperada para não ser posta em questão) na função que a educação vem assinalando à própria arte no âmbito dos museus.
“Para que serve a música? Para que serve a pintura? Quem seria louco de preferir Mozart ao Sr. Carrel, e Michelangelo ao inventor da mostarda branca?” – tais questões vão deixando de ser colocadas diante da defesa de localizar no museu uma plataforma educacional da arte bem fundamentada em sua tarefa edificante. Tanto faz em nome de quê, o resultado é que se vai também deixando de perguntar, parafraseando Gautier, “para que serve ensinar a arte?”.
A questão jamais disse respeito às intenções: não importa se estas são as melhores, elas, mesmo assim, continuam escondendo a verdade de não poderem afirmar que a arte sirva para aquilo que desejam – não, pelo menos, sem que inventem uma arte que responda sempre apropriada a elas (quanto mais se buscará azeitar um Van Gogh em nome de aplacar o mal-estar de sua obra? Ou um Dostoiévsky?).
Talvez o problema não esteja tanto no que se espera do museu, ou da arte (ora, reivindicar que ambos devam morrer não seria novidade alguma depois de toda a profunda crítica por que passaram essas instituições), mas uma concepção de formação que parece se esquecer que a cultura se constitui sempre por embate, por tensões fortes (entre povos, classes, moralidades distintos), incompreensões de ordens as mais diversas, acessos tortos, apreensões atravessadas. Vale lembrar a lição de Panofsky:
“Não acredito que só se deva ensinar a uma criança ou adolescente aquilo que este possa compreender. Na verdade, é a frase meio digerida, o nome próprio que soa conhecido, o verso meio compreendido, lembrado mais pelo som e ritmo que pelo significado, que persiste na memória, captura a imaginação e emerge subitamente, trinta ou quarenta anos mais tarde, quando nos deparamos com uma pintura baseada no Fasti de Ovídio ou com uma gravura cujo motivo foi sugerido pela Ilíada – assim como uma solução saturada de hipossulfito se cristaliza, repentinamente, quando agitada”[12].
[1] GAUTIER, Théophile. Romans, contes et nouvelles. Paris: Gallimard, 2002, p. 230. O trecho foi extraído do romance Mademoiselle de Maupin, publicado em 1835. No original: “À quoi bon la musique? à quoi bon la peinture? Qui aurait la folie de préférer Mozart à M. Carrel, et Michel-Ange à l’inventeur de la moutarde blanche? Il n’y a de vraiment beau que ce qui ne peut servir à rien; tout ce qui est utile est laid, car c’est l’expression de quelque besoin, et ceux de l’homme sont ignobles et dégoûtants, comme sa pauvre et infirme nature. – L’endroit le plus utile d’une maison, ce sont les latrines”.
[2] Talvez não seja possível negar o paralelismo entre as longas defesas que se fizeram em nome da autonomia da arte e o pulso de ultra especialização por que passam todas as esferas do trabalho e das atividades humanas, da economia à política e à ciência, marcadas por avanços que as vão tornando cada vez mais cifradas. Tal processo de avançada especialização se faz sentir na arte como em todas essas demais áreas, e, uma vez que se mostra tão generalizado, reclama uma crítica igualmente severa. Por isso mesmo, deve-se reconhecer de saída a importância de toda reivindicação de acesso público à arte; o que, no entanto, não pode se confundir com a miragem de “acesso a seus códigos”. Como as demais esferas supracitadas, arte também é processo histórico, não apenas língua a ser aprendida e passada adiante, e não apenas bem a ser desfrutado.
[3] ARANTES, Otilia Beatriz Fiori. A “virada cultural” do sistema das artes. In: Margem Esquerda, São Paulo, vol. 6, 2005, p. 67. Quer dizer: descartar de saída a importância do debate da arte para a sociedade contemporânea poderia ser um ato radical, não fosse o fato de que a esfera da arte se veja cada vez mais imbricada na esfera dos negócios atuais, da economia à política, o que, portanto, exige redimensionar sua importância, se se pretende falar em “liberdade”, “democratização da cultura”, ou qualquer um desses termos que vão se tornando clichês para todo tipo de “ação cultural”.
[4] O trecho encontra-se traduzido para o inglês no mais do que recomendado estudo de Thomas Crow, Painters and Public Life in Eighteenth Century Paris (New Haven; Londres: Yale University Press, 2.000, p. 6: “…the Academy does well to render a sort of accounting to the public of its work and to make it known that progress achieved in the arts it nurtures by bringing to light the work of its most distinguished members in the diverse genres it embraces so that each thereby submits himself to the judgement of informed persons gathered in the greatest possible number and receives the praise or blame due him. This will both encourage genuine talents and unmask the false fame of those who have progressed too little in their art, but, full of pride in their illustrious company, think themselves automatically as able as their fellows and neglect their calling"
[5] La Font de Saint-Yenne, Lettre de l'auteur des réflexions sur la peinture et de l'examen des ouvrages exposés au Louvre em 1746. Apud CROW, Thomas. Op. Cit., p. 6: “it is only in the mouths of those firm and equitable men who compose the public (…) that we can find the language of truth”.
[6] O comentário é de Pidansat de Mairobert, escrito em Paris, em setembro de 1777 e publicado como L'Espion Anglais ou Correspondance sur les Moeurs Publiques et Privées des Français, em 1809, em Paris, com edição de Léopold Collin (o trecho encontra-se entre as páginas 59 e 60 desse volume). No original: «Il faut ajouter seulement qu’on débouche, par une sortie de trappe, d’un escalier, quoique assez vaste, presque toujours engorgé: sorti de cette lutte pénible; on n’y respire qu’en se trouvant plongé dans un gouffre de chaleur, dans un tourbillon de poussière, dans un air infect, qui, imprégné d’atmosphères différentes d’individus d’espèce souvent très malsaine, devait à la longue produire la foudre ou engendrer la peste, qu’étourdi enfin par un bourdonnement continuel, semblable au mugissement des vagues d’une mer en courroux. Au reste, ce mélange de tous les ordres de l’état, de tous les rangs, de tous les sexes, de tous les âges dont se plaint le petit-maître dédaigneux ou la femme vaporeuse, est pour un Anglais un coup d’œil ravissant. C’est peut-être le seul lieu public où il puisse retrouver en France l’image de cette liberté précieuse dont tout offre le spectacle à Londres, spectacle enchanteur, et qui m'a plu davantage que les chef-d'ouvres étalés dans ce temple des arts. Là le savoyard coudoie impunément le cordon bleu; la poissarde, en échange du parfum dont l’embaume la femme de qualité, lui fait fréquemment plisser le nez pour se dérober à l’odeur forte du brandevin qu’elle lui envoie; l'artisan grossier, guidé par le seul instinct, jète une observation juste, dont, à cause de son énoncé burlesque, le bel espirit inepte rit à côté de lui, tandis que l'artiste, caché dans la foule, en démèle le sens, et la met à profit».
[7] VALÉRY, Op. Cit., p. 32; 33.
[8] Idem, p. 32.
[9] ADORNO, Op. Cit., p.185.
[10] Idem, p. 178.
[11] Idem, p. 178.
[12] PANOFSKY, Erwin. Epílogo: três décadas de história da arte nos Estados Unidos. In: Significado nas artes visuais. São Paulo: Perspectiva, 2009, p. 457.
[1] VALÉRY, Paul. O problema dos museus. In: ARS, São Paulo, 2008, p. 31.
[2] ADORNO, T. Museu Valéry Proust. In: Prismas – crítica cultural e sociedade. São Paulo: Ática, 1998, p.185.