Atitude e sustentabilidade
Relato por Carlos Felipe Guzmán Cuberos.
Coordenação dos Relatos Críticos Beto Shwafaty.
No auditório da Bienal no Parque Ibirapuera, tiveram lugar os painéis relativos ao tema ‘Cidade, gestão e sustentabilidade em museus / Museus e movimentos sociais’. As primeiras intervençõe foram da Profa. Maria Cristina Bruno do ‘Museu de Arqueologia e Etnologia da USP’ (MAE-USP) e de Afonso Luz, diretor do ‘Museu da Cidade de São Paulo’.
O ‘MAE-USP’ tem como principal desafio o estabelecimento de reciprocidade com a comunidade, o museu “vê para ser visto”. A instituição tem foco na Arqueologia, na Museologia e na Etnologia, contendo acervos do Brasil Indígena, da America Andina, do Oriente Médio e de culturas Africanas e Afro brasileiras. O intuito da instituição é a formação profissional, a geração de conhecimento, a educação para a ciência e o patrimônio, além do tratamento contemporâneo dos acervos.
O ‘MAE-USP’ busca nos movimentos sociais seu primeiro interlocutor. Desta forma, o projeto ‘Girassol’ tenta gerar diálogos com a comunidade do Jardim São Remo, vizinha da Universidade de São Paulo. O projeto propõe a convivência e a reciprocidade, e estabelece um trabalho com crianças e parcerias com instituições já formadas. Ele é composto por vários módulos, nos quais desenvolvem-se oficinas, visitas e atividades coletivas. Os resultados são expostos no ‘MAE’, com a colaboração das crianças, dos educadores e da equipe do museu. O projeto envolve várias dimensões, focando a paisagem cultural e resistindo aos “muros” que dividem o espaço institucional da sociedade.
Por sua vez, Afonso Luz do ‘Museu da Cidade de São Paulo’, descreveu os múltiplos desafios que enfrenta a instituição, que tem seu acervo disperso ao longo da cidade. Tratam-se, em sua maior parte, de imóveis e logradouros históricos. Um olhar crítico caracterizou a fala de Afonso Luz. Ele afirmou que este museu trabalha muitas vezes como uma “imobiliária”, tentando lidar com os bens imóveis como patrimônio histórico e como parte de acervo museológico. A maior parte do acervo – localizada em dezessete pontos da capital paulista – não é acessível ao público. Um exemplo é a ‘Praça Monteiro Lobato’, onde fica a ‘Casa do Bandeirante’, na região do Butantã. O local encontra-se cercado por grades, estabelecendo o cercamento de um bem público. Para Luz, a dinâmica imobiliária refere-se mais às dinâmicas patrimoniais do que culturais. A ‘Casa Modernista’ na Vila Mariana é ocupada por escoteiros, que usam seu espaço em troca de manutenção e cuidado do lugar. Em conclusão, a relação do museu com a cidade é conflitiva, pois nessa, interesses públicos e privados enfrentam-se permanentemente.
O melhor exemplo desse conflito pode ser ilustrado com o caso do primeiro centro cultural dedicado às tradições negras em São Paulo, o ‘Acervo da Memória e do Viver Afro-Brasileiro Caio Egydio de Souza Aranha’. O terreno tombado fica no sul da cidade, no distrito do Jabaquara. A comunidade afirma que nesse lugar ficava um grande quilombo dos tempos da escravidão. Não existem dados históricos que permitam verificar o relato, porém Afonso comenta que a instituição deve levar a sério a força semântica que resgata a comunidade do distrito. ‘Jabaquara’ é uma palavra indígena que traduz “Toca de fuga” o que remete ao “esconderijo” ou à “preservação do fugitivo”. Em síntese, a palavra indígena ‘Jabaquara’ tem o mesmo significado da palavra africana ‘Quilombo’ e dessa forma, é válido o sentido que a comunidade atribui a este lugar.
Pensando no conteúdo semântico e na capacidade das palavras serem construtores da realidade, Afonso propôs retirar a palavra “de” do nome das instituições culturais (Museu “da” luz, Museu “da” cidade). É preciso pensar na semântica para que o museu se afaste do papel de “imobiliária” que vem ocupando.
No painel seguinte foi aberto o microfone para Miguel Gutierrez do ‘Museu de Arte de São Paulo’ (MASP) e para Paula Signorelli do ‘Instituto Tomie Ohtake’. Signorelli descreveu a origem e o processo de construção dessa proposta cultural, que se localiza no bairro de Pinheiros e num edifício de empreendimento comercial do laboratório farmacêutico Aché. Dessa forma, o Instituto ‘Tomie Ohtake’ compartilha o espaço com diversos locais comerciais. Como uma entidade sem fins lucrativos mas de caráter privado, o Instituto se mantém economicamente a partir do apoio das leis de incentivo à cultura. Sua localização nesse imóvel tem a ver com a carência de espaços culturais e o que a palestrante chamou de processo de “revitalização da região”.
Miguel Gutierrez do MASP descreveu como um “projeto de sucesso” e modelo exemplar a ‘Galeria Tate’ de Londres, localizada numa antiga planta de energia elétrica desativada. Segundo Gutierrez, o projeto promoveu o “desenvolvimento econômico numa área degradada da cidade”. De 3.500 pessoas o bairro passo a ter 7.000, gerando múltiplos empregos. De maneira semelhante ao ‘Instituo Tomie Ohtake’ a ‘Tate’ ajudou na “revitalização da região”. Para o diretor administrativo e financeiro do MASP, a sustentabilidade esta baseada na superação de diversos desafios financeiros. No contexto brasileiro o maior destes desafios, tem a ver com a grande dependência dos recursos do Estado. O museu então passa a depender da legitimidade e estabilidade do governo.
Este painel gerou um grande contraste com as conclusões e temas expostos pelo primeiro grupo. A “sustentabilidade” neste caso, foi entendida pelo viés financeiro. Para o ‘Instituto Tomie Ohtake’ e o ‘MASP’ a função e a “sustentabilidade” dos museus (e espaços culturais) está fortemente ligada à defesa e geração de renda privada. Em paralelo ao que foi falado por Afonso Luz, o museu é entendido como “imobiliária”, espaço que “revitaliza áreas degradadas”, que atrai o investimento privado e gera riqueza. Os projetos contabilizam em números seu papel no espaço público da cidade. Porém não são contabilizados os efeitos negativos do empreendedorismo cultural, as pessoas de baixa renda que são expulsas dos lares pela especulação imobiliária das novas áreas revitalizadas. Este fenômeno, conhecido como “gentrificação” não foi analisado pelos palestrantes.
No horário da tarde aconteceu o encontro de Maurice Politi do ‘Núcleo de Preservação da Memória Política’ do ‘Memorial da Resistência de São Paulo’ e de Franco Reinaudo do ‘Museu da Diversidade Sexual’. Para Maurice Politi a resistência atravessa a história do Brasil. Os principais interesses do ‘Museu da Resistência’ tem a ver com os seguintes pontos:
1. O museu não é do passado. Existe um estimulo permanente à participação comunitária.
2. Resgate de fatos históricos pouco difundidos.
3. Gestão sustentável.
Uma pergunta constante que o museu faz ao publico é: A que vocês resistem?
O ‘Museu da diversidade sexual’ resiste, entre outras questões, ao preconceito histórico e aos 326 assassinatos de homossexuais acontecidos no Brasil em 2014. Fruto de um processo histórico que começa no Movimento pelos direitos LGBT no final da década de setenta o ‘Museu da diversidade sexual’ constitui no mundo, uma das três instituições que trabalham com essa temática. Só as cidades de Berlin, São Francisco e São Paulo possuem museus com essa característica. Para o diretor Franco Reinaudo, o museu precisa ter uma “atitude” para combater a discriminação.
Na ‘definição restrita da arte’ o artista uruguaio Luis Camnitzer, afirma que na origem a palavra “arte” era sinônimo de “atitude” (CAMNITZER, 2006). Neste sentido o trabalho do ‘Museu da diversidade sexual’ atinge a base essencial dos processos artísticos. O painel ‘Memorial da resistência’ gerou, assim, um dialogo aberto e complementar ao painel ‘Museu da diversidade sexual’.
O último painel esteve composto pelo Projetos ProAC Editais: “Museu de Mineralogia Aitiara” (Botucatu), “Projeto Memórias da Ferrovia em Bauru” (Bauru) e “Imagens da Memória – Preservação da coleção de negativos de vidro do Museu do Porto de Santos” (Santos).
O ‘Museu de Mineralogia Aitiara’ fica no município de Botucatu, na zona rural e primeira fazenda orgânica e biodinâmica do Brasil, no bairro ‘Demetria’. O projeto trabalha os conceitos de memória, beleza e ciência e afirma a “geodiversidade” como defesa do patrimônio geográfico e mineral da região. O projeto se estruturou por meio da doação da coleção de amostras de rochas do professor de artes Erich Otto Blaich, em 2008.
“Memórias da Ferrovia em Bauru” é um projeto de mediação no museu. Por meio de bonecos e de contação de histórias, uma companhia de teatro ensina aos visitantes, na maioria crianças, as historias pouco conhecidas da Ferrovia em Bauru. Esse projeto de intervenção no museu procura resgatar a história da cidade. Ao mesmo tempo reconhece e ativa o patrimônio e a memória de uma pratica cultural local como é da contação de historias.
O projeto “Imagens da Memória” tenta preservar a coleção de negativos de vidro do ‘Museu do Porto de Santos’. Além do processo de conservação desse formato antigo de imagens (daguerreótipo), as mesmas foram digitalizadas e disponibilizadas na internet. Para os impulsores deste trabalho, “a história não é para ficar na gaveta”.
Esses projetos se caracterizam por seu caráter local, por tratar das pequenas historias de comunidades no interior do Estado de São Paulo. Neles, o público atingido não é o dos grandes museus da capital, assim como esses não possuem interesse na revitalização de áreas degradadas das cidades. O foco reside no resgate e na “revitalização” das memórias locais, todas em perigo pelos projetos de modernização e avanço da economia neoliberal.
Os trabalhos falam de uma sustentabilidade que não se baseia na geração de grandes capitais econômicos, mas na capacidade das idéias dos cidadãos em se tornarem visíveis e presentes. O motor dessa sustentabilidade esta na atitude dos autores, os quais trabalham permanentemente para que as idéias surjam não obstante dos múltiplos obstáculos do caminho. A atitude se torna, então, motor dos sonhos, que transformam-se em arte para nunca mais ficarem nas gavetas.