“Don't be afraid of the popular”
Relato por Carlos Eduardo Riccioppo
Coordenadoria dos relatos por Beto Shwafaty
Assim que Iain Watson, diretor do TWAM - Tyne & Wear Archives and Museums,[1] encerrou sua palestra a respeito das atividades do TWAM, surgiu da plateia uma questão acerca de um mote formulado por Watson em algum momento de sua apresentação: “Don't be afraid of the popular” (“Não tenha medo do popular”).
Na apresentação de Watson, “não ter medo do popular” descrevia e justificava uma série de iniciativas do TWAM, marcadas pela vontade de aproximação entre o museu e os moradores da região. Entre elas, contabilizavam-se uma mostra sobre o futebol (segundo, Watson, uma mania de Tyne), outra com obras da coleção da Tate, com destaque para as de Picasso, e, ainda, uma exposição de objetos ligados à indústria bélica.
É certo que, para Watson, “popular” designava uma oposição a uma cultura “erudita”, “alta”, high culture. Mas, a questão que vinha da plateia tangenciava uma outra acepção do termo, indagando, mais diretamente no campo das artes visuais, as chamadas “mega-exposições”, que vêm ocorrendo no Brasil desde meados da década de 1990 (as mostras de Rodin – Pinacoteca do Estado, 1995 – e de Monet – MASP, 1997 – sendo marcos iniciais) e que, no ano passado, contabilizaram mostras de Picasso (Centro Cultural Banco do Brasil, 2014), Yayoi Kusama (Instituto Tomie Ohtake, 2014), e Ron Muek (Pinacoteca do Estado de São Paulo, 2014), todas elas, como bem lembrado na questão levantada, tornando o convite ao selfie irresistível. A pergunta da plateia lembrava as críticas ferozes que se fizeram a esse tipo de exposição no país, dizendo que o museu acabava, é claro, conquistando a atenção do público, que passava a formar filas quilométricas diante de suas entradas, mas que era necessário saber o quanto essa “virada popular” melhoraria de fato a situação do museu na atualidade.
Nada mais compreensível do que o aparecimento de uma questão como essa no Brasil, sobretudo diante da fala que elegia a sobrevivência dos museus como protagonistas de um debate que ultrapassa em muito a questão dessas instituições. Tal debate trata, afinal, de “bem-estar social”, “justiça social e política”, “acesso à informação” e “identidade cultural” (para mencionar apenas alguns pontos levantados por Watson), temas, como se sabe, ligados a toda experiência cultural, senão também ao papel que a cultura desempenha na indústria do entretenimento, nas políticas públicas, e assim por diante. Se a pretensão é compreender o museu como um espaço privilegiado para o debate de temas que são cruciais para toda a esfera pública, é preciso – em concordância com a questão levantada pela plateia – que o museu se posicione criticamente em relação à experiência que tem visado propiciar.
Aqui, caberia, sem que se pretenda polemizar com qualquer iniciativa museológica em que pese a pretensão sempre bem vinda da formação de público, estender a questão para a necessidade de que os debates acerca do papel do museu na constituição de uma dimensão social mais justa, marcada pelo imperativo do bem-estar, não deixassem de lado uma dúvida constituinte acerca desse papel; ou, dito de outro modo, a necessidade de que se reconhecesse, ao lado mesmo de toda reivindicação por uma atuação direta do museu nos processos sociais, ao menos a possibilidade de que essa instituição não apenas pudesse recusar-se ao embate mais ou menos selvagem pela atração do público, mas, acima de tudo, que pudesse duvidar da natureza de sua função social, refletindo com mais vagar a respeito do tipo de experiência cultural que carrega ou propicia, sem que seja premida pelo imperativo da “ação social”, e, por isso mesmo, mais apta a indagá-lo em toda sua complexidade.
Sobretudo para um caso como o brasileiro, que atravessou o século XX debatendo a respeito da possibilidade de formular uma cultura própria apesar mesmo de sua situação periférica, muitas vezes reconhecendo relevante dependência da cultura dos grandes centros, é preciso atentar para o estatuto que adquiriu o termo “popular”. Quer dizer, aqui, “popular” não pode designar uma mera oposição a “oficial” ou “áulico”, porque, em situação cultural de dependência, tal oposição reverbera em uma polarização entre centro e periferia, ou, se se preferir, metrópole e colônia – basta lembrar a importância que os temas populares possuíam já nos estudos sobre a música brasileira de Mario de Andrade, da década de 1920.
Não se podia esperar, é claro, que Watson viesse munido, para sua palestra, do conhecimento desse longo debate do país; e a questão levantada pela plateia não trata de cobrar qualquer coisa nesse sentido. Contudo, a resposta do palestrante acabou por tangenciar um esclarecimento que diria mais respeito ao “popular” no sentido que caberia a uma situação histórica como a brasileira, do que ao apelo pop exercido pelas mostras blockbuster em âmbito mundial.
Após dizer que está perfeitamente consciente dos problemas dessas mega-exposições, Watson responde à questão dizendo que fala do ponto de vista de seu contexto específico, o de um museu que se sabe regional, e afirma que os temas “populares” que ele menciona devem ser todos consequentes, capazes de pensar a história local. A paixão pelo futebol marca a cultura da região; as obras que foram levadas da Tate para lá relacionavam-se à Guerra Espanhola, na qual combateram moradores de Tyne; a mostra de armamentos expunha um dos últimos tanques de guerra fabricados em Tyne, cujo desenvolvimento esteve ligado à indústria bélica.
Sem que se precise entrar no mérito dos projetos de formação de público que foram sendo criados ao passo que o TWAM organizava suas mostras, é notável por si só que esses museus tenham proposto tais mostras como instâncias de debate e autorreconhecimento da população que os cerca, de modo que as atividades que as acompanhassem deveriam lidar com o rigor dos reexames históricos em questão – o que, aliás, nominava de saída um público já participativo na esfera da cultura, e não amorfo, à espera da possibilidade de uma “participação” qualquer em uma cultura que lhe fosse ou parecesse alheia.
[1] – TWAM, organismo que administra nove museus e galerias da conurbação de Tynesyde, além dos arquivos de Tyne e Wearside, no Reino Unido