Contrapúblicos: o paradoxo e o paradigma
Relato por Wandré Silva
A mesa aqui relatada foi a primeira de quatro, do encontro “Públicos e mediação cultural”, ocorrido em Brasília. Faz parte do evento intitulado “Encontros de Mediação na Arte Contemporânea: a atuação dos públicos”, que contou com mesas ocorridas em outras três cidades: São Paulo, Espírito Santo e Niterói. O evento é de iniciativa do grupo de pesquisa ligado ao Fórum Permanente no Instituto de Estudos Avançados da USP. Em todos os encontros, discutiu-se aspectos dos públicos e da mediação cultural, tema o qual deu nome ao encontro de Brasília. Este relato é sobre a primeira mesa, no dia 23 de Novembro de 2016, intitulada “Públicos e Contrapúblicos”, com a participação de Diogo de Moraes, Graziela Kunsch e Ilana Goldstein, e mediação e debate de Tatiana Fernández.
Há diversas concepções e literaturas para o que é mediação cultural. As falas e discussões propostas no evento tiveram como escopo abarcar, analisar e refletir sobre essas diversas acepções, principalmente no que tange à mediação cultural não só como serviço, mas também como prática cultural, como bem lembra Cayo Honorato, coordenador do encontro, em sua fala de abertura. Pois, o serviço diz respeito à área e atuação profissional – o que carece de formação e currículo –, enquanto a prática cultural não envolve necessariamente agentes que sejam profissionais. Por fim, mas não menos importante, a mediação foi tida e debatida enquanto lugar de pesquisa.
Esta primeira mesa trata dos lugares dos públicos e seus papéis. Percebo o termo lugar, assim com papéis, nas falas e debates ocorridos (e assim uso tais sentidos como prisma de leitura), como define Certeau (1998), que faz uma distinção entre o lugar – estabelecido, estático e definido – e o espaço – a ação que se desenvolve dentro desse lugar. Por vezes, indo além das fronteiras que contornam um lugar. Como exemplo, podemos tomar as duas acepções de mediação cultural apresentadas (enquanto serviço e como prática cultural) respectivamente como lugar e como espaço, pois a prática cultural possibilita um uso diferente das ofertas instituicionais, que seria um lugar; entendendo que são formas de uso do aparelho cultural, estabelecido para o público, mas não pelo público, e sim, pela prestação de serviços, como tipicamente definida e gerida pela instituição. A mediação enquanto pesquisa também é um lugar e, como tal, pode ser subvertido em seu uso, formas e limites. Aos visitantes de Instituições Culturais que atuam de tal modo – como prática cultural, e não seguindo itinerários dados pela instituição – trataremos aqui como contrapúblicos. Alguns relatos de observação e ações tanto por sujeitos quanto por propostas institucionais, que se configuram como contrapúblicos, constituíram as falas dos convidados dessa mesa do encontro.
Contrapúblicos é um termo criado e definido pelo crítico literário Michael Warner (2016), em sua obra “Públicos e contrapúblicos”, que é apresentada como referência bibliográfica para a discussão da mesa. Nesta obra, o autor faz uma genealogia e analisa algumas concepções de públicos, dentre as quais algumas serão visitadas aqui pelos pontos em comum ou mesmo referência que guardam com os estudos e ações apresentados pelos convidados da mesa. É partindo dos públicos, para eles e através deles, que vislumbramos o que pode ser mediação cultural e suas possibilidades. Há quatro definições de público que este autor apresenta que nos interessam aqui: (1) que um público é constituído meramente pela atenção; (2) que ele atua historicamente de acordo com a temporalidade da sua circulação; (3) que ele é um espaço social criado para a circulação do discurso; e por fim, o que nos apresenta claramente a natureza dos contrapúblicos, (4) que um público é a feitura de um mundo poético, artesão da sua forma de atuar – o que pode ser visto, da perspectiva da obra de Certeau, como o espaço criado pela forma de atuar singular do indivíduo em relação a um lugar a ele ofertado (o lugar de obras e atividades culturais, o lugar de ver arte, o lugar de ser visitante de museu etc).
A mediadora da mesa e, após a abertura pelo coordenador do evento, deu início, apresentando os convidados: Diogo de Moraes, artista visual e mediador cultural, pesquisa em sua dissertação de mestrado a atuações dos públicos e as práticas artísticas; traz em sua fala conceitos e reflexões fundamenteis para pensarmos públicos e ofertas institucionais, sobretudo os chamados contrapúblicos. Já Ilana Goldstein, que é bacharel e mestre em Ciências Sociais, especialista em Direção de Projetos Culturais e doutora em Antropologia, apresenta a pesquisa de sua tese de doutorado, onde tornam-se evidentes possibilidades reais de mediação cultural através da arte, do ponto de vista dos artistas e do mercado de arte, este último como veículo de transformação social e reparador de fraturas históricas, como a falta de diálogo entre grupos de etnias e realidades sociais diferentes . De forma semelhante, porém da pespectiva da formação de públicos e ofertas culturais democráticas, Graziela Kunsch, artista, editora, crítica, curadora e professora, traz para a mesa o seu trabalho na Vila Itororó onde é responsável pela formação de público no projeto Canteiro Aberto. Seus projetos sempre estão envolvidos com a expansão do chamado “público da arte”, ao relacioná-los com contextos políticos e sociais. Mas que, diferentemente do projeto apresentado por Ilana, que ocorre na Austrália, estará mais próximo a nós (público da mesa) por se tratar de uma experiência que ocorre no Brasil.
A primeira fala é de Ilana, que anuncia que apresentará um trabalho um pouco diferente, mas que, com o interesse do público, pode-se construir pontes com o tema do encontro – como de fato é feito aqui. Embora destoe das outras apresentações, essas pontes não surgiram de nenhum grande esforço, pois o que ela apresenta traz um exemplo claro da possibilidade da mediação cultural entre grupos culturalmente diferentes, através do fazer artístico. Sua tese traz a arte dos aborígenes da Austrália e as questões históricas e sociais que orbitam em torno dela.
A convidada conta que após décadas de colonização violenta, dizimação de etnias, escravização e marginalização dos grupos aborígenes na Austrália, o governo percebe na arte aborígene uma plataforma de comunicação, uma forma de inserção na sociedade branca. Segundo a palestrante, “A arte aborígine australiana, no fundo, foi a única maneira de comunicação, de mediação, no sentido mais amplo dessa palavra, que estes dois universos culturais encontraram”. Após tensões e desencontros, através dessa produção artística, esses dois mundos tiveram alguma possibilidade de dialogo após séculos. Porém, esse fomento da arte indígena coincidiu com o momento em que se divulgaram as atrocidades do passado e começou-se a criar e propagar uma consciência sobre a devastação provocada pela colonização. Criaram políticas públicas para a arte indígena e criaram público e mercado. O que movimenta esse sistema todo são as Cooperativas autogeridas pelas próprias comunidades indígenas na Austrália, fomentadas pelo governo. A primeira delas (Papunya Tula) surgiu do encontro de um educador visual (Geoffrey Bardon) com uma comunidade aborígene, no começo dos anos 1970, nos diz a convidada.
Hoje, as obras aborígenes sempre ocupam a primeira galeria dos museu da Austrália e também são colocadas junto com obras abstratas de artistas brancos, no intuito de se criar diálogos e mediações entre os povos através da arte. Os museus tem que contratar pelo menos um curador indígena, dentre outras funções dessas instituições, que emprega grande parte das gerações mais novas que estão se mudando para a cidade: artes visuais, educação, designer etc. Hoje essa arte tem uso inclusive comercial, tendo de suvenires turísticos – como gravatas, bolsas e camisetas – até elementos da paisagem urbana como interfaces de caixas eletrônicos etc. Todo esse universo conta com legislações específicas como o Código de conduta para os negócios com a arte aborígene e código de conduta comercial de arte indígena aborígene australiana. Há margem para a agência desses artistas – eles gostam de pintar, só pinta o que interessa a eles, dão o preço. Mais à frente podemos perceber semelhanças desse caso com as ações e mediações culturais ocorridas no projeto Canteiro Aberto da Vila Itororó, apresentado pela convidada Graziela.
Do ponto de vista das políticas culturais, essa fala nos ensina algo, pois o Brasil também tem uma diversidade étnica enorme, principalmente indígena, com grupos de repertório visual muito sofisticado. A gente pode aprender com as políticas de fomento australiana à arte indígena, em vez de ver a arte do indígena brasileira como mero artesanato, desprovida de valor artístico e estético, depreciando-o ainda mais e afastando os grupos indígenas de qualquer possibilidade de aproximação e convivência com os demais grupos e culturas que compõe a população brasileira. A comparação também é apresentada pela palestrante.
Se Ilana trouxe um caso onde o holofote se debruça sobre a possibilidade de mediação cultural através da arte, Diogo de Moraes, ao se apresentar para iniciar sua fala, declara que falará sobre públicos, particularmente sobre as concepções de públicos sustentadas pelas instituições culturais.
Conforme as evidências que nos apresenta, esses lugares criados para os públicos ocuparem ao entrarem em contato com a oferta da instituição são transformados em espaços, pela forma de atuação dos indivíduos, que ela procura antever e dar-lhes identidade, podendo tratá-los como público, no sentido de um público homogêneo e genérico, analizando da pespectiva de Warner . Porém, essas atuações, emancipadas dos protocolos oferecidos aos públicos pelas próprias instituições culturais , de como utilizar as ofertas, criam tensões nas próprias instituições, no que se refere à forma como concebem seus públicos e como os gerem, já que os contrapúblicos destoam do esperado como público. Salvo alguma exceção não mencionada, as instituições sempre preferem deixar essa multiplicidade de formas de atuação, de respostas a suas ofertas, à distância de sua vista, desconsiderando sua existência, pois não há protocolo para os contrapúblicos. O convidado se baseia em observações dos vários centros culturais que trabalhou em São Paulo e em outros, da mesma cidade, em que usa como campo para sua pesquisa de mestrado intitulada “Diário do busão: visitas escolares a instituições culturais”, não presenciando a consideração dos contrapúblicos por parte da Instituição em nenhum desses lugares.
Como mediador cultural que já atuou em diversos Centros em Brasília, posso afirmar que o mesmo se passa nessa cidade. Aqui é interessante frisar a natureza desses contrapúblicos definida por Warner, como a feitura de um mundo poético (ou artesanato de sua forma de atuação) pelo próprio individuo, pois suas percepções culturais e imaginário social farão com que ele reaja de forma distinta dos outros, em relação a uma dada oferta institucional. A menos que ele se force a ocupar o lugar que lhe dão: silêncio, manter-se atrás da linha amarela, não correr, não tocar etc. Discursos que evidenciam relações de poder – como Diogo desenvolve, em sua fala e sua pesquisa, citando Foucault (s/d) – perpetuando de maneira invisível papéis que não são quebrados, fronteiras que permanecem, chagas, como o lugar que dão ao público de “carente de cultura” ou “ desprovido das competências necessárias à fruição da arte” – o que, de certo modo, é o que dá vasão ao trabalho de mediação, em uma de suas concepções pelo menos, como lembrou Cayo Honorato, a se referir a ela no começo do encontro, como serviço.
Trazendo aspectos de sua pesquisa de mestrado, Diogo comenta um deles: “Pensar a mediação cultural como um atravessamento praticado sobre uma plataforma onde se encontra temporariamente as ações institucionais, os objetos e proposições artísticas, as propostas pedagógicas e o público”. Segundo ele, nessa instância fragmentária, coisas acontecem, formas de atuação divergem do esperado, assim como os processos e os resultados de aproximação cultural, passam por mutações.
Em suas observações e pesquisa, ele mostra a atuação dos públicos enquanto formação emergente de sujeitos políticos. Desse ponto de vista, podemos pensá-los como potenciais para uma mediação cultural horizontal, criadora da própria oferta e uso do espaço, com se constata na experiência vivida e apresentada por Graziela Kunsch, na fala seguinte da mesa.
Dessas formas de atuação dos públicos, surgem imprevisibilidades, um novo imaginário, um escape, uma frustração – esses são os contrapúblicos, que reagem a essas formas de “governamentalidade”. Este termo, utilizado por Foucault, pode ser visto como a oferta da instituição, para um público que ela projeta, sendo negada ou utilizada de outra forma por aqueles intitulados contrapúblicos. Dessa forma, o convidado analisa o panorama dessas instituições culturais e seus serviços educativos, a partir da perspectiva que o autor citado chama de “nova economia das relações de poder”, que se baseia nas experiências ocorridas no presente imediato, como Diogo demonstra na citação transcrita nesse relato, dois parágrafos atrás. Podemos aqui lembrar e relacionar o caso apresentado por Ilana Goldstein, se pensarmos tanto os artista aborígenes quanto o australiano branco como públicos da mediação cultural que se constrói através de tensões e negociações. Esses públicos artesãos de sua forma de atuar são sujeitos sempre em conflito pelas identidades atribuídas a eles por instituições e agências de poder. Essas formas de poder sempre são mantidas à sombra pelas instituições e reveladas de maneira espontânea pela atuação dos contrapúblicos.
Em seus discursos mais recorrentes, as instituições, ao dizerem o que falta ao outro por meio de seus programas educativos, já apresentam a solução, prometendo preencher esse déficit, essa pouca familiaridade com as questões da arte, principalmente contemporânea. Talvez por isso, a simples mudança do termo “educativo” para “formação de público” tenha gerado uma outra forma de mediação cultural e construção de proposta para utilização de um Centro Cultural, no exemplo que Graziela trará a seguir.
Geralmente, classificam os públicos genericamente, como pertencentes a uma faixa etária ou grupo social. Segundo Diogo, ao categorizar o outro, estou lhe imputando a minha individualidade, desta forma, inviabilizando perpetuamente o outro a não sair do lugar do leigo. Essas ações são respaldadas pelos poderes do saber, como se a instituição cultural estivesse “autorizada” a determinar o que é cultura e o que não é, e como público deve a fruir. Ignorando que a partir dessas atuações divergentes da suas concepções do que é cultura e de como se relacionar com ela, teriam agendas outras, surgidas das percepções e ações por parte do próprio público. Afinal, os públicos são o fim para o qual as ofertas existem, como na terceira definição de público de Warner, apresentada no começo do texto “ele é um espaço social criado para a circulação do discurso”. Entende-se a oferta como discurso.
A mesa encaminha-se para a última convidada, Graziela Kunsch, que começa sua fala citando o convidado anterior como um contraste com a relação que ela tem com os públicos, pois, se Diogo de Moraes apresentou uma visão dos públicos a partir do ponto de vista de um observador, ela, por outro lado é responsável pela formação de públicos, pelas formas de envolvê-los. Os esforços do trabalho são para transformá-los em públicos ativos e engajados, que participam das tomadas de decisões na instituição.
Referindo-se às desocupações em 2006 dos moradores da Vila Itororó¹ para fins de Centro Cultural, a convidada se perguntou: “Por que pra acontecer a cultura ali, as pessoas teriam que sair?” E revelando mais uma vez um discurso vertical, endereçado a um público genérico imaginado, os moradores não foram consultados. Foram decisões verticais, pelo governo e prefeitura, um modus operandi de dar lugares, como em um mapa, o lugar que você deve ocupar, como dito por Certeau, assim como evidenciado pelos dados apresentados por Diogo.
Segundo Graziela, as intenções primeiras da prefeitura nos planos eram barzinhos, lanchonetes, uso comercial. Só depois de muita persistência que eles mencionaram um museu. Se isso foi tido como “cultural” pelo governo anteriormente, por que morar não seria cultura hoje? – indaga a palestrante. Seria possível um centro cultural em que tenha pessoas morando, e que essas pessoas gerenciem o espaço – assim ela propõe pensar a cultura como cultivo, permanência, continuidade. Se lembrarmos da fala de Ilana sobre as contendas entre os aborígenes e os brancos, e como a mediação cultural trouxe não só a aproximação e recomposição de algumas fraturas, mas também a abertura de diálogo e escuta de ambas as partes, possibilitando a negociação de demandas e interesses, conseguimos perceber como passível de sucesso a proposta de Graziela para a Vila.
O Instituto Pedra, junto ao qual Graziela trabalha, trouxe uma proposta diferente ao iniciar o trabalho de restauração (para o que foi contratado) na Vila. Em vez de realizarem um trabalho de restauro padrão, trabalhando de 3 a 5 anos com as portas fechadas, conforme proposta do curador e do arquiteto da obra, abriu-se o canteiro de obra desde o início e, no centro do canteiro, uma experiência de centro cultural, para que todos os debates que aconteçam nesse espaço, possam influenciar os usos futuros da Vila Itororó, tornando a discussão coletiva, fazendo com que as decisões venham de baixo para cima. Neste trabalho, tudo que vai sendo reativado conforme o restauro, ganha uso cultural por parte dos participantes: salas e pátios já restaurados passam a serem ocupados por eventos culturais (debates, encontros, oficinas etc).
A palestrante conta que, ao entrar no projeto, uma das suas primeiras propostas foi tirar o nome de “Educativo” do setor que iria trabalhar no projeto e colocar “Formação de Público”. O fez para evidenciar o sentido de constituir o público, como audiência e com noção de si mesmo enquanto público. Tal ação poderia ser vista aqui como uma tentativa de transformar um lugar dado e seu protocolo (o educativo) em espaço (formação de público), sendo que o próprio título já é aberto e receptivo ao que seria esse público e como interagir com ele, como defendeu Diogo anteriormente. O termo educativo já revela um discurso endereçado e um lugar posto para o quem vai receber o serviço. Para uma área que foi desapropriada, declarada como de interesse público, a convidada questiona: “uso público pra quem? Quem determina que algo tem interesse público? Só pode ser de interesse público se esses direitos de participação, escolha e responsabilidade forem compartilhados ” .
O grupo envolvido no projeto extrapolou também o lugar de “visita patrimonial” pois, pela Lei Rouanet, parte da verba do restauro vai para essa prática e é com esse fundo que acontecem os projetos de formação dos públicos, priorizando trabalhos com continuidade às visitas efêmeras, pontuais, como é o caso das visitas escolares, distanciando-se assim da ideia de um público que vai à instituição, consome e não retorna, como de fato vi, a título de exemplo, em relação à maior parcela dos visitantes do Museu Nacional em Brasília, onde realizei pesquisa sobre a atuação dos públicos.
Graziela relata que a própria gestão do projeto é conjunta, sendo que as ideias surgem dos vários envolvidos e as posições se alteram conforme a demanda. O projeto acontece “na raça e de forma experimental”, como diz a palestrante, mas ainda assim, a meu ver, constituiu um exemplo consistente de formação e de relação com os públicos de maneira alternativa ao costume das instituições culturais aqui no Brasil, como as mencionadas por Diogo. Segundo Warner que tomamos como base, o trabalho que Graziela realiza na formação de públicos poderia se chamar de “autotélico”: um público enquanto entidade que se auto organiza, ou ainda, um público seria “um espaço de discurso organizado para nada além do próprio discurso”, sendo que ele poderia ser o próprio criador e destinatário como nos apresenta em exemplo a experiência na Vila Itororó.
Com a fala da última convidada, fecha-se a mesa, que, no entanto fica aberta às questões e reflexões geradas pelas falas dos convidados: a forma que as Instituições veem os públicos, como os tratam ou como eles reagem ao que é oferecido, as possíveis soluções dessa relação público/oferta, dentre outras. Se a primeira fala trouxe o exemplo da mediação cultural, por meio da Arte Aborígene, de uma perspectiva de agentes de poder se mobilizando para o diálogo e promoção de horizontalidade em formas de participação e auto-representação, Diogo nos apresentou o outro lado da moeda, não exposto de maneira clara na primeira fala (pois Ilana nos mostra um cenário do qual podemos analisar o público enquanto artistas e seus agenciadores). Na fala do segundo convidado, fomos apresentados aos contrapúblicos, às diferentes formas de atuação desses que são intitulados “o público” de forma nublada pelas instituições. Por fim, o exemplo que Graziela expôs parece criar pontes ou, posso dizer, possibilidades de entrecruzamentos e aprimoramentos de possíveis junções entre o relatado por Ilana (com a possibilidade de diálogos horizontais e mediação cultural dos artefatos da cultura) e o estudo apresentado por Diogo (sobre os públicos, suas verdadeiras demandas, como atuam, reagindo ao ofertado). Como poderiam essas empirias ser paradigmas para a construções de novos discursos e ofertas, mais consonantes com as percepções culturais e necessidades estéticas do local que circunda dado Centro Cultural e seus habitantes? O projeto apresentado por Graziela parece um suspiro nesse sentido. Se as falas muito nos instigam, o exemplo da Vila Itororó inspira e abre caminhos rumo ao possível.
Notas
¹ A Vila Itororó é um conjunto arquitetônico idealizado por Francisco de Castro, com mais de dez edificações construídas ao longo do século XX para fins residenciais e de lazer. A Vila está localizada entre bairros na região central da cidade de São Paulo. Ela foi tombada como patrimônio pelo CONPRESP (órgão municipal) em 2002 e pelo CONDEPHAAT (órgão estadual) em 2005. Em 2006 foi decretada área de utilidade pública, tendo sido desapropriada pelo governo do Estado e pela prefeitura de São Paulo para fins culturais, declarou os orgãos. A restauração da Vila Itororó, iniciada em 2013, é realizada através de uma parceria entre a Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo e o Instituto Pedra.
Referências
CERTEAU, Michel. A invenção do Cotidiano: Artes de fazer. Petrópolis. Editora Vozes, 1998.
FOUCAULT, Michel. O sujeito e o poder. Disponível em: <http://bit.ly/2jadsmR>, acesso em 04/01/17.
WARNER, Michel. Públicos e Contrapúblicos (versão abreviada). Em: Periódicos Permanentes nº 6 , Fevereiro de 2016.