Entre brechas, fissuras e ocupações

Encontros interestaduais de mediação na arte: a atuação dos públicos - MAC Niterói

Por Karen Aquini



A segunda mesa da edição fluminense dos Encontros interestaduais de mediação na arte: a atuação dos públicosdo Fórum Permanente, "Educação e as brechas nas instituições", teve a mediação de Adriana Russi e foi composta por Felipe Arruda, Diretor de Educação e Cultura do Instituto Tomie Ohtake, Janaina Melo, Gerente de Educação do Museu de Arte do Rio e pelo artista e professor Jorge Menna Barreto.


Antes de mais nada, é preciso esclarecer que minha relação com os temas do encontro se iniciou bem antes do 20 de novembro. Não somente porque eu e Diana Kolker, com a orientação de Luiz Guilherme Vergara,  ficamos responsáveis por conduzir o encerramento do dia, o "Fórum do zero ao zero: perguntas geradoras de mundos", mas porque algumas das inquietações suscitadas pelas temáticas propostas têm pairado sobre minha atuação como educadora e pesquisadora que busca habitar e experimentar espaços entre práticas pedagógicas e artísticas. Sendo assim, minha escuta esteve mediada desde o princípio por indagações como: o que as instituições e os agentes da arte esperam por atuação dos públicos? Estariam as proposições artísticas e os espaços de arte abertos aos deslocamentos causados pela potência de criação desses públicos? O que nos ensinam as ocupações nas escolas, universidades e instituições culturais no sentido de repensar a função pública dos museus e da arte? E como este fenômeno propõe às instituições novos paradigmas às questões de educação e de representação/representatividade, considerando as hierarquias na política de saberes, entre produtor e receptor, professor e aluno, artista/museu e público? E, ainda, como falar em brechas nas instituições quando estamos lidando com a ocupação das mesmas? Essas questões acabam ressurgindo ao longo deste relato rearticuladas com as falas aqui narradas.

Com a introdução de Adriana Russi, Jorge Menna Barreto abriu a mesa trazendo uma perspectiva da mediação a partir do campo de atuação do artista. "Restauro", trabalho integrante da 32ª Bienal de São Paulo, é resultado de pesquisas sobre diferentes formas de usos da terra e produção de alimentos, imersões em agroflorestas e interlocuções com agrofloresteiros. Apostando em estratégias de não representação e na potência do alimento como extensão da floresta e mediador da relação sociedade-ambiente, Menna Barreto o elege como protagonista e responsável pela mediação entre os públicos da Bienal e o espaço remoto - a agrofloresta. A proposta, habitando um entre obra de arte e restaurante, consistia em oferecer diariamente pratos preparados com produtos de agroflorestas, que eram consumidos pelos públicos em meio a paisagens sonoras (captadas em parceria com Marcelo Wassen) e outros elementos coletados durante a pesquisa. A mediação, de que fala o artista, é aquela que acontece de forma celular, da "boca pra dentro" daquele que consome o alimento dotado de florestidade, e que estreita relação fora-dentro, fazendo do consumidor um participante do processo.

Ao compartilhar sua pesquisa, a fala de Jorge é pontuada pelo contraste entre agrofloresta e monocultura, enquanto a primeira é ambiente de diversidade, o que reverbera também em sua acústica densa e polifônica, a segunda é produto de um movimento contrário à sucessão natural, que leva à não-continuidade e à escassez, resultando em uma paisagem sonora silenciosa. Além de suscitar reflexões mais diretas como a relação entre alimentação e impacto ambiental e como nossos hábitos esculpem o planeta, o contraponto agrofloresta-monocultura também pode nos servir como metáfora para pensarmos nas formas de ocupação das instituições pela sociedade. Como buscar possibilidades de ocupação alternativas que cultivem a diversidade e a polifonia no lugar do discurso único e universalizante? Como praticar instituições-floresta?

"O que podemos fazer juntos?" A questão, segundo Janaina Melo, serve de base para o desenvolvimento das atividades da Escola do Olhar, projeto de educação do Museu de Arte do Rio. Sua fala teve como foco o Vizinhos do MAR, programa de agenciamento local que investe na criação de processos continuados de relacionamento com os moradores da região portuária da cidade, território onde o museu se insere. Apostando na potência que é estar na relação e em processo, a interface com a vizinhança se dá através da escuta, do diálogo e das articulações dos processos artísticos e sociais já presentes no território, e é através dessas articulações “que vão se conformando as práticas desse lugar que se chama museu”. As falas de vizinhos compartilhadas e experiências narradas, como a vizinha Tia Lúcia que performou espontaneamente na abertura de uma das exposições do MAR, dialogam com e apontam possibilidades para algumas das questões levantadas no início do texto. A performance da Tia Lúcia opera na brecha da instituição ou a ocupa? Podem os museus superar as limitações das divisões entre ator e espectador, produtor e consumidor? Como propiciar ambientes favoráveis ao agenciamento e negociação com os públicos, e como isso se conecta à reflexão sobre a função pública dos museus?

Felipe Arruda inicia sua contribuição com a observação de que as brechas não dizem respeito somente ao exercício que as instituições devem fazer para se manterem porosas, mas às fissuras que elas devem causar em si próprias para se atualizarem, ultrapassando seus próprios limites. Pondera sobre os desafios que as instituições de arte e cultura enfrentam, como a fragilidade das políticas culturais, as arquiteturas impositivas, a crença em um cânone absoluto e o fato de que se constituem, em sua maioria, a partir de um pensamento burguês, ocidental e branco. Destaca que, em muitos casos, as equipes de educação trabalham “contra” a instituição, pois atuam no sentido de fissurar e deslocar o sistema único, geralmente estabelecido, de representação e de legitimação de determinados discursos. Apesar dos desafios, como poderia a instituição colocar, efetivamente, seus recursos e seu capital social e político a serviço de seus públicos sem deixar, entretanto, de ser propositiva (pois “o povo sabe do que gosta, mas também gosta do que não sabe”)? Essa questão, lançada por Felipe, instiga o Núcleo de Cultura e Participação do Instituto Tomie Ohtake a desenvolver projetos socioculturais, programação cultural e propostas educativas e curatoriais que contam com a participação de artistas, professores e públicos diversos do Instituto. Foram compartilhadas experiências como uma “obra pública” (constituída por relatos enviados pelos públicos) integrando uma das exposições e uma publicação educativa concebida com professores, também projetos futuros como a criação de um comitê de visitantes para a escuta de suas demandas e interesses. Podemos perceber, nesta fala e na de Janaina, o exercício institucional de construir programas que ampliem o sentido de atuação dos públicos.

A importância da escuta, as trocas e trânsitos de aprendizagens (entre artistas, instituições e públicos), a mediação que se dá em processo e cria lugares de incertezas e instabilidades, os transbordamentos, a porosidade, a diluição da autoridade e da autoria, foram alguns dos pontos destacados por Adriana Russi a partir das falas dos convidados. O debate da mesa aconteceu inserido no “Fórum do zero ao zero: perguntas geradoras de mundos”, que se deu em formato de roda composta por todas as pessoas presentes, incluindo a “plateia”. Pudemos estabelecer conexões entre as falas compartilhadas, como as de Jorge, Janaina e Bianca Bernardo (que havia composto a primeira mesa), que apontavam para um deslocamento da representação para a extensão - do mundo e da atuação dos públicos. Também como entre as propostas artísticas de Jorge e dos artistas da mesa anterior, Ricardo Basbaum e Raquel Garbelotti, que demonstram priorizar a experiência e o processo em vez de um resultado expositivo específico. Esses artistas também lidam com metodologias que acabam causando fissuras nas estruturas hierárquicas das políticas de saberes, pois buscam aprendizados em instâncias deslocadas dos discursos hegemônicos. Essas questões também estão conectadas às proposições institucionais do MAR, Instituto Tomie Ohtake e Museu Bispo do Rosário.

No exercício de mapear “perguntas geradoras de mundos” que emergem das discussões, as inquietações pontuadas no início deste relato são rearranjadas no contato com as experiências e urgências trazidas pelos participantes. E este exercício acaba se mostrando mais coerente do que a busca por afirmações, considerando que temos lidado com uma situação de forte instabilidade das políticas culturais e sociais. Desta forma, encerro com algumas questões que imagino que possam colaborar para um pensamento sobre possibilidades de futuro: Como as instituições e os artistas podem se colocar cada vez mais na relação com o outro sem a priori, a partir do zero? Como criar mais ambientes favoráveis às ocupações efetivas das instituições e para o aprendizado com os públicos, para além do discurso da participação? Como efetivamente mensurar os resultados das ações propostas no sentido de se construir instituições polifônicas? Estamos de fato fazendo com e não fazendo para? O que garante a continuidade das instituições frente às instabilidades atuais e como a ocupação dos públicos pode fortalecê-las? Como avançar no debate sobre atuação dos públicos para além dos agentes das instituições e do campo da arte? Não deveriam os públicos - ou alguns deles - estarem incluídos nesses debates?