Cânone e colonial guilt.
Relato por Julia Buenaventura
“Se sua pergunta é se estas tentativas fixam mais o cânone, eu acho pessoalmente que sim”.
Inti Guerrero
Com um tom descontraído e assertivo, a intervenção de Inti Guerrero – curador Adjunto de Arte Latino-americana Estrellita Brodsky na Tate Modern –, no dia 22 de setembro no Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo, dividiu-se em duas partes. A primeira sobre a estrutura da Tate e as funções que desenvolve um curador adjunto nessa instituição inglesa. Na segunda, Guerrero apresentou o roteiro da exposição “Cronologia das intervenções” que teve lugar no instituto Teor/ética em Costa Rica em 2012 e, logo, na Tate em 2014.
Desde o início, o curador colombiano deixou claro que sua fala não iria ser comemorativa ou promocional da Tate, muito pelo contrário, via desde uma perspectiva crítica o processo da montagem de um museu global. Isto é, um museu que dei conta da arte do mundo todo, objetivo que de alguma forma a Tate quer atingir na sua reestruturação dos últimos anos. Assim, se na instituição existem comitês e curadores para diferentes regiões do planeta, a coleção se planteia como conjunto total. Uma coleção de arte só, sem divisões, sem fragmentos. Espécie de utopia, mas como toda utopia quando cai na realidade termina por se quebrar pois implica uma homogeneização que a realidade nunca acaba por preencher.
A Tate é enorme, afirmou Inti, e os curadores não estão envolvidos na montagem da coleção. Como Cuauhtémoc Medina do México ou José Roca da Colômbia –que ocuparam o mesmo cargo anos atrás–, sua função consiste em propor roteiros com as peças existentes. Isto é, os curadores não participam dos comités de aquisições, seja de arte latino-americana, seja de arte dos Estados Unidos. E menciono os dois juntos, porque como explicou Inti, eles foram criados ao mesmo tempo, faz 20 anos, coincidindo justamente com a entrega da última colônia britânica: a transferência de soberania de Hong Kong no final da década de 90. “Colonial Guilt! (Culpa colonial!)”, comentou o curador, não sem uma boa dose de humor e ironia.
Neste momento, a Tate Modern conta com várias salas de exposição temáticas, das quais Inti apresentou três. A primeira, curada por Matthew Gale e intitulada “A view of São Paulo” (Um olhar sobre São Paulo), reúne um conjunto de obras que vão desde Mondrian, Malevich e Léger até Schendell e Oiticica[1]. A sala é uma paisagem de artistas não figurativos baseado nos roteiros de primeira e segunda bienais. Uma exposição que da conta das relações do Movimento Concreto, sempre tão paulista, e que tem a virtude de misturar os artistas de diferentes contextos sem estabelecer fronteiras. Porém, é preciso dizer que Guerrero apresentou a sala de uma forma sucinta e sem maior entusiasmo e que o público, –ou pelo menos eu–, apreceu as imagens com algo de desconfiança: era como se esse olhar sobre São Paulo fora desde uma nave espacial, a milhares de quilômetros –ou milhas– de distância, como se São Paulo fora outra. Eu acho que é bom enxergar o bosque, mas não podemos esquecer nunca ele está feito de árvores particulares, específicas e muito diferentes entre elas.
A segunda sala se intitula “A view of Buenos Aires”. Curada por Tanya Barson, o roteiro reúne obras de América Latina em geral, com foco naqueles artistas que fizeram parte ou exibiram no CAYC, o Centro de Arte y Comunicación de Buenos Aires, que começou funcionar no fim da década de 60. Finalmente, “Beyond Pop” (Além do Pop) se propõe dar uma visão do movimento Pop global que escape do preconceito do pop como um fenômeno unicamente inglês ou americano. Nesse esquema, ficam juntos Beatriz González da Colômbia e Lichtenstein dos Estados Unidos.
Perto da sala está a Torre de Babel de Cildo Meireles e é possível avistar um Nam Jum Paik. De fato, Inti referiu esta última obra, mostrando uma foto em que aparecia bem atrás do Beatriz González. González –apontou Inti– pinta a Turbay, um dos ex presidentes da Colômbia em cujo mandato aumentou notavelmente o índice de mortes; Nam June Paik apresenta, em dois monitores de televisão, a Nixon, um dos presidentes dos Estados Unidos cujo mandato teve mais mortes no contexto da Guerra de Vietnam. A relação entre as duas obras é possível de se estabelecer, mas não é deliberada, no sentido em que as peças correspondem a salas e projetos curatoriais diferentes.
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Na segunda parte da conversa, Inti Guerrero apresentou “Una crónica de las intervenciones” que, curada por ele e Shoair Mavlian (Tate), foi catalogada por Artforum como uma das melhores exibições de 2012.
A mostra está baseada na exposição “Cronologia: uma crónica da intervenção dos EEUU em Centro América e América Latina” que teve lugar no PS1 de Nova York[2], em 1984, e foi proposta pelo Group Material, conformado, principalmente, Julie Ault e Doug Ashford[3]. E aqui vou lembrar que o começo da década de 80 foi um período difícil demais para América Central. Países como Nicarágua e Guatemala estavam sendo arrasados por uma longa guerra patrocinada pela América post-Vietnam, assim fazer essa exposição em Nova York foi um ato heroico e carregado de solidariedade de uma esquerda estadunidense que estava junto com a América Latina.
Neste ponto, Inti Guerrero falou sobre lugar em que o projeto de 2012, foi concebido, o espaço Teor/ética em Costa Rica. Um instituto fundado em 1999 por Virginia Pérez-Ratton (1950-2010), logo após de sua participação como curadora convidada na 24o Bienal de São Paulo, a Bienal da Antropofagia curada por Paulo Herkenhoff em 1998.
A fundação de Teor/ética coincide com o final da guerra em Centro América, assunto que –como assinalou Inti– é necessário ressaltar, desde o contexto em que, de alguma forma, Costa Rica se sente responsável por narrar a história da região. Nessa altura da conversa, Inti fez alusão a uma estatua muito interessante –que chamou particularmente a minha atenção–, o Monumento Nacional de Costa Rica (1895), em que alegorias das nações de Centro América decapitam ao invasor norte-americano. Dessa forma, fazia muito sentido ter “Una crónica de las intervenciones” justamente nesse pais.
A mostra segue o programa do Group Material, que era justamente um “timeline”, uma cronologia. Assim, uma linha vermelha percorre as paredes do lugar, e cada ponto nela é uma intervenção norte-americana específica –o roubo do Canal de Panamá ou o assassinato do presidente de Chile Salvador Allende, por exemplo. A linha avança entre textos, alusões, obras de arte, café e essas bananas que marcaram o romance Cem Anos de Solidão, quando a Unite Fruit Company organizou a Massacre das Bananeiras no começo do século, no Caribe colombiano.
Na curadoria de 2012, a mostra do Group Material entra como base, mas são convidados um leque de artistas contemporâneos a dialogar com esse passado específico. Assim, o cartaz original que fora feito por Claes Oldenburg é apresentado junto com trabalhos de Regina José Galindo, Andrea Zagman, Naufus Ramirez-Figueroa, Humberto Velez, entre outros.
Finalmente, “Uma cronologia” concebida em Teor/ética em 2012, foi apresentada na Tate em Londres em 2014. Só ressalto que essa exposição não faz parte do trabalho de Inti como curador adjunto na instituição, pois ele começaria a exercer esse cargo específico, dois anos depois, em janeiro de 2016.
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A partir desse ponto, viram as perguntas. Quero deixar constância neste relato de que Aracy Amaral estava na sala, mas saiu antes de abrirmos a discussão. De qualquer jeito, ter Amaral entre o público é sempre um compromisso, pois ela tem tecido de forma fundamental tanto o presente quanto a história da arte de nosso continente durante as últimas décadas.
As perguntas versaram sobre as limitações da labor curatorial, como funciona a aquisição no museu e as relações entre as diferentes esferas: curadoria e aquisição. Inti respondeu que existiam várias limitações, que era difícil para qualquer museu adquirir peças pelos preços cada vez mais altos, e que para um curador da Tate sempre era possível sugerir uma determinada compra, porém, a decisão final não estava nas suas mãos.
Na frente da questão, colocada por Gilberto Mariotti, sobre se tentativas como as novas salas da Tate mudavam de fato o cânone, Inti foi enfático. “Vivemos num momento etnográfico da arte”, afirmou, “as exposições vêm da culpa colonial, mas isso”, agregou, “não é um assunto só da Tate, o Guggenheim também segue uma linha semelhante, com um programa para convidar curadores da África, América Latina, Oceania ou o Sudeste Asiático”. E concluiu: “Mas se sua pergunta é se estas tentativas fixam mais o cânone, eu acho pessoalmente que sim”.
Nesse ponto, interveio Martin Grossmann, que estava presente na conversa desde Berlin, através de Skype, e comentou que de qualquer jeito o cânone não mudava senão mudava o modelo de museu, o cubo branco que temos até hoje. De igual forma, Martin perguntou como era vista a arte brasileira na América Latina. Pergunta que Inti respondeu de forma novamente enfática: “O que se conhece da arte do Brasil (no resto da América Latina), é porque passa pela Europa”.
No final, Inti concluiu que o cânone não se muda em grandes estruturas. “Eu acredito no poder micro-político”, disse, “em mudar pequenas estruturas ou organizar exposições”. E agregou que era necessário perceber que tudo isto, as salas sobre outras cidades, sobre outros pontos na geografia global, foi feito justo antes do momento em que os ingleses votaram para sair da União Europeia. Isto é, votaram para não se misturar, para não ter migrações.
E nesse momento, 22 de setembro, ainda não sabíamos do vitória de Donald Trump. O que quero falar com isto é que num contexto global em que ganham os projetos de separação dos grandes impérios –o projeto de construir um muro ou de se afastar do continente–, os museus estão propondo coleções cujas fichas técnicas carecem de nacionalidade. Coleções sem passaporte, e curadorias sem envolvimento político, o que faz elas nebulosas, ou pior ainda, politicamente corretas.
Que significa isso? Eu acho que há uma separação entre a arte e a realidade, entre a arte e o contexto político e econômico. Nós, que participamos destes encontros, dessa borbulha chamada arte, sejamos marchands, acadêmicos, curadores, artistas, etc., estamos completamente fora da realidade. Dai a nossa melancolia. Como voltar nessa realidade? Vamos ver, mas a Revolução já não opção nenhuma. Talvez estaria com Inti em que o micro é o caminho, nas curadorias a pequena escala e, no meu caso particular, na sala de aula.
[1] Oiticica, afirmou Inti, é tido pelos ingleses, mais do que como brasileiro ou latino-americano, como parte do experimentalismo fundamental na arte do século XX.
[2] O PS1 Contemporary Art Center foi e ainda é um importante espaço alternativo. Foi fundado por Alanna Heiss, em 1971, como Art and Urban Resources Inc. Depois passou a ser PS1, em 1976. Somente, em 2000, o MoMA tomou conta dele. Alanna Heiss, a diretora, é um personagem incrível da história da arte, entre outros tantos assuntos foi a responsável de levar a Gordon Matta-Clark ao leilão onde o artista comprou os lotes da Cidade de Nova York, que depois conformariam a obra Propriedades Reais: Lotes Fictícios.
[3] Hoje o Group Material está sendo amplamente estudado. Seu membro mais reconhecido é o artista cubano-americano, Félix González-Torres, ainda que no momento dessa exibição específica não fazia parte do coletivo baseado na cidade de Nova York. Sobre esse grupo e especificamente sobre González-Torres faz referencia minha tese de doutorado: Propriedades sem bens: dos lotes de Gordon Matta-Clark às manifestações de Félix González, FAU-USP, 2014. Link: Para os interessados, ver: