Relato Mesa 3
O encontro no Centro Cultural São Paulo reuniu Simon Will, Maria Leite, Daniel Herthel e Edouard Fraipont, artistas que participaram do programa de residências Artist Links, e o curador e professor Fernando Oliva, mediador do debate. Organizado pelo British Council e pelo Arts Council da Inglaterra, o programa Artist Links financia residências artísticas para artistas brasileiros na Inglaterra e para artistas ingleses no Brasil.
Simon Will, do coletivo Gob Squad, foi o primeiro a falar. Em tom irreverente, apresentou o coletivo, formado há 14 anos: “não somos um grupo de motociclistas Hell’s Angels”. Tendo trabalhado em diversas situações específicas, o Gob Squad se interessaria por criar, através da arte e do teatro, “comunidades temporárias” em que o público é instigado a participar, ou, ao menos, sente-se instigado, ainda que, no fim, a participação lhe seja negada. “Teatralidade”, “mágica caseira”, “fantasia” e uma “estética trash”, aplicadas à “banalidade” e à “vida cotidiana”, seriam meios de explorar “identidades de grupos”.
O grupo veio a São Paulo pela primeira vez em 2006. Em visita ao edifício Itália, os artistas perceberam que sentimentos de “existencialismo, angústia e esperança”, na mesma medida, constituem uma “condição” da cidade com a qual milhões de pessoas lidam todos os dias. O Minhocão foi considerado um “microcosmo interessante” para descrever a “condição incrível” de São Paulo: “se São Paulo fosse uma floresta, o Minhocão seria um rio, cheio de diversidade e criaturas incríveis, cortando o bairro ‘gentrificado’ de Higienópolis e o bairro mais tradicional de Santa Cecília”. O Minhocão se tornou, assim, o “enquadramento conceitual” a partir do qual o Gob Squad desenvolveria seu trabalho.
A primeira idéia seria “dar a câmera à cidade”: motoristas de táxi, vendedores de coco, moradores dos prédios fariam com que a câmera “corresse” pelo Minhocão, este transformado numa espécie de “guia rígido”. O interesse do grupo, entretanto, não era documental – não se pretendia captar a realidade, mas intervir nela: “vestir quatro bêbados de homem-aranha”, “vestir de fada o vendedor de coco e pedir que ele cante uma música”...
O projeto para o Minhocão, intitulado “Now Fly”, se organiza em duas fases. Na primeira, que durou um mês e acaba de se encerrar, o grupo se dedicou a conhecer o lugar, encontrar outros artistas e colaboradores, cuidar de detalhes práticos e, sobretudo, testar idéias e situações de trabalho. Sendo uma “característica brasileira” a dificuldade de se planejar coisas com antecedência, o próprio país incentivava a espontaneidade: “aqui as coisas acontecem subitamente”. Por isso partiu-se de um plano muito aberto.
Com a ajuda de uma artista brasileira que atuava como tradutora, Simon realizou entrevistas [video portraits] com a população da região: uma faxineira que morava num prédio e divertia-se à noite assistindo da janela às pessoas transando no viaduto (“plataforma para todo tipo de atividade”), uma ex-chacrete que nunca sorria e, é claro, o vendedor de coco. As entrevistas partiam de perguntas básicas sobre o cotidiano e a relação com o Minhocão e aos poucos ganhavam “estatuto mais poético”: que poderes mágicos você gostaria de ter? O que você faria com esses poderes? Aonde iria se pudesse voar? Simon afirmou ter conhecido pessoas muito “brincalhonas” e dispostas a “se divertir conosco”.
Mais uma vez ele insiste que o grupo não está interessado em realizar documentário. Seria preciso evitar uma abordagem voyeur, que fetichizasse as pessoas. Como envolvê-las no projeto sem objetificá-las? Simon pediu que as pessoas repetissem o que haviam dito “como num discurso”, como se de fato pudessem voar, se de fato tivessem os tais poderes mágicos. Mas isso não funcionou, pois eles “não eram de atores”. Além disso, nos trabalhos do Gob Squad, segundo Simon, sempre se vê a construção de algo diante das câmeras, e nesse caso a construção estava acontecendo “fora do alcance da câmera”.
Seria necessário pensar em outras imagens para “povoar” a intervenção. Idéias com fantasias de super-heróis foram aventadas e abandonadas: “os super-heróis na verdade não salvam o mundo, né? Não alimentam os famintos na África, não resolvem a corrupção, não prendem George W. Bush num bloco de gelo”. Muitas das pessoas entrevistadas insistiam na questão dos níveis de ruído no Minhocão. Surgiu então a idéia, que será testada na segunda fase do projeto (em julho próximo), de fazer um trabalho com grupos de canto coral. Arranjos escultóricos com centenas de vozes, sobre o viaduto, embaixo dele, nos prédios.
Os últimos dias da primeira fase do projeto foram dedicados a um exercício de captação de imagens, um “grande esboço”. Começando num ponto de ônibus, ligaram a câmera, que se deslocou num ônibus, numa bicicleta, num carro, num skate, foi presa a uma corda, sustentada no nível da rua e no nível do viaduto, foi entregue à Fátima (a faxineira), que a levou à sua casa e “fez o que quis” por cinco minutos e, finalmente, dada a um casal escolhido ao acaso. O casal teria que conduzi-la até o fim do viaduto, filmando o que quisesse, fazendo o que quisesse, e devolvê-la depois. Uma das cenas protagonizadas por esse casal envolveu o canto exaltado de uma música evangélica com a câmera virada para o céu. O resultado foi considerado “empolgante” devido às diferentes “texturas” obtidas, texturas que apontavam para diferentes “personalidades da câmera”. “A câmera se tornava o autor”.
Embora Simon Will tenha mostrado excertos das entrevistas e imagens do “esboço” durante sua fala, na exposição do Centro Cultural o Gob Squad optou por exibir um trabalho anterior, sem relação com o projeto efetivamente desenvolvido durante a residência (“Super Night Shot”, de 2003). Dado o caráter acentuadamente processual e transparente que o grupo reivindica (lembremos que a construção “sempre” se dá diante das câmeras), acredito que o material produzido em São Paulo, ainda que sem o estatuto de trabalho finalizado, poderia ter sido exibido. Some-se ainda o fato de que a exposição vincula-se a uma residência artística, modelo cujo maior interesse, para além das vogas do meio de arte, pode estar justamente nas obstruções, nas dificuldades, no que não se realiza como “resultado” – desde que não se pretenda capitalizar em cima de uma idéia vaga de processo.
Após a fala de Simon Will, Maria Leite e Daniel Herthel descreveram sua experiência anterior e apresentaram o projeto realizado durante a estada de dois meses na Inglaterra. Maria é formada em design e Daniel, em Belas Artes. Interessados em “bonecos, escultura, escultura cinética, teatro e o que mais aparecer”, ambos começaram a desenvolver a pesquisa atual a partir do trabalho com o grupo de teatro de bonecos Giramundo, sediado em Minas Gerais. Junto ao grupo, suas atividades se relacionavam ao desenvolvimento de soluções mecânicas para os movimentos de bonecos e cenários – “cada boneco era um novo desafio”.
Daniel conta que, já durante a faculdade, começara a criar esculturas articuladas como máquinas, que realizavam movimentos mas não cumpriam qualquer função. Interessava-lhe a “aparência” dessas peças. Maria, por sua vez, considera que seu trabalho sempre respondia a demandas funcionais, de modo que o encontro com Daniel teria permitido uma “complementaridade”.
Do trabalho com o Giramundo o casal partiu para a realização de animações em stop motion em que movimentos mecânicos de máquinas eram simulados. Abrir mão da exeqüibilidade real do movimento possibilitava uma “liberdade completa”, possibilitava que eles “interferissem com a gravidade” e representassem coisas “possíveis e impossíveis”.
Na viagem à Inglaterra o casal pretendia pesquisar os autômatos, bonecos cujo movimento se sustenta autonomamente, feitos com o “pensamento da marionete, mas o controle inverso”. O resultado da pesquisa seria uma animação que catalogasse movimentos mecânicos. Ao chegar visitaram uma exposição do grupo “Cabaret Mechanical Theatre”, especializado na construção de autômatos que sempre mantêm os mecanismos aparentes. Realizaram um workshop com o grupo e aprenderam “soluções fantásticas”. Fizeram contato ainda com o “bonequeiro” Stephen Mottram, que apresenta espetáculos manipulando sozinho vários bonecos em cena, com grande precisão de movimentos. No trabalho de Stephen, segundo Maria, a relação entre boneco e máquina se faz sem que isso implique rigidez, movimentos duros. Parece que “quanto mais mecanizado, mais orgânico” fica seu trabalho.
A partir dessas experiências o casal desenvolveu, ainda na Inglaterra, a animação “Casa de Máquinas”, atualmente exposta no Centro Cultural São Paulo. O trabalho se deu em condições bastante improvisadas, num estúdio instalado num quarto da casa em que os dois se hospedavam, incorporando objetos encontrados nas ruas e ferramentas inventadas. A preocupação central do trabalho, para além do catálogo inicialmente previsto, era descobrir “como uma máquina manipuladora poderia criar”, ao invés de “repetir o mesmo movimento”. Tratava-se de incorporar o “acaso” e obter resultados “alternativos”, “movimentos diferentes”.
Se o objetivo da dupla era desestabilizar os determinismos da máquina, descobrindo novas “soluções”, submeter-se a uma situação de trabalho desconhecida parece ter produzido efeitos aproveitáveis, de modo que o modelo da residência funciona positivamente. Penso que num projeto de arte contemporânea, diferentemente, o que se “aproveita” é mais difícil de aferir, uma vez que não se trataria de encontrar “soluções”, mas problemas. Mesmo o conceito de criação (“como uma máquina manipuladora poderia criar”) e o parâmetro valorativo da “criatividade” que dele deriva deveriam ser entendidos, na arte contemporânea, com alguma ressalva.
Edouard Fraipont conta que, partindo de uma formação em cinema, passou a trabalhar com a técnica fotográfica, criando imagens em que atua também como modelo, entremeando “realidade e ficção”. No início as imagens eram captadas na casa do artista, depois passaram a ser feitas nas ruas e recentemente o litoral brasileiro se tornou a locação preferencial. O trabalho foi ganhando um caráter mais “intuitivo”, “improvisado”, em que as “contingências” e os “encontros com lugares” têm papel central. Ir para o Reino Unido seria “mais um passo”. “Construir oportunidades para que o trabalho acontecesse”, ao invés de “construir imagens”: foi o que Edouard planejou para a residência.
A princípio previa realizar duas viagens. Na primeira, com duração de um mês, ele se dedicaria a levantar locações. Numa segunda viagem passaria dois meses trabalhando em um único lugar. Porém, limitações financeiras do programa tornaram o plano inicial impossível. Edouard teve que fazer uma única viagem e, portanto, “procurar e trabalhar” simultaneamente. Gerenciar o tempo foi um problema; “o tempo escapava”. Ele passou três semanas na cidade inglesa de Barrow-in-Fourness, três semanas em Glasgow, na Escócia, e três semanas em Plymouth, Inglaterra. Ele considera que deveria ter se concentrado mais, “mas o trabalho reflete a situação” e, assim, o “fugente” tornou-se o seu mote.
Ao problema de gerenciamento do tempo somou-se uma particularidade climática: choveu durante toda a sua estada no Reino Unido. O trabalho teve que retornar aos espaços fechados, internos, alimentando-se de um “isolamento físico”, de um “isolamento cultural” e da “distância do cotidiano”. A concentração no trabalho foi uma experiência interessante, mesmo que não tenha sido necessariamente “produtiva”, mas antes relacionada a um movimento que Edouard denominou “desconstrução crítica”. Os resultados surgiriam depois do período de residência.
As fotografias produzidas lá traíram certa melancolia, suas cores se tornaram menos vivas, menos saturadas. A partir de uma seqüência de imagens estáticas, pela primeira vez Edouard realizou um vídeo. A câmera fixa num espaço interno capta, através de um vidro respingado de chuva, o deslocamento de um corpo que se afasta e se perde na neblina. Segundo Edouard, estando a câmera “dentro” e o corpo “fora”, o exterior era trazido para o interior do trabalho.
Edouard relatou uma série de adversidades ocorridas no período de residência. Barrow é uma cidade de 3000 habitantes, dedicada, segundo ele, à fabricação de submarinos nucleares, uma cidade cuja população se reduziu drasticamente, sem imigrantes, sem vida cultural, sem atrações, sem universidade; uma cidade estranhíssima. Por mais que Edouard tivesse se preparado, sentia-se “mergulhando em águas profundas com um snorkel”. Foi recebido com bastante agressividade, roubaram-lhe a bicicleta e até jogaram-lhe pedras (!). A instituição que o acolhia, embora com instalações excelentes, era completamente desabitada e ele se sentia um “inquilino”.
Em Glasgow, depois de mais um episódio de hostilidade (tentaram roubar-lhe a câmera), Edouard trabalhou no campo, hospedando-se em “bothies”, refúgios nas montanhas que, mediante o pagamento de uma taxa anual baixa, qualquer um pode usar. O local é bastante precário; o “hóspede” tem que coletar água e lenha para aquecer-se. Garantir as condições mínimas de sobrevivência ocupava boa parte do dia, sendo difícil se dedicar ao trabalho. Em Plymouth a situação foi diferente. Trata-se de uma cidade universitária e, como Edouard havia sido convidado pela curadora do Plymouth Art Center, havia “interesse” na sua presença. Embora seu estúdio consistisse numa “mesa com cadeira”, pôde “interagir”, conversar, mostrar o trabalho e “abrir portas”.
Num balanço geral, Edouard considerou a experiência “rica”, sobretudo porque “numa residência aumenta a quantidade de entropia, de desordem na vida”. Os limites que se criam, segundo ele, fazem parte do programa. Ele elogiou a iniciativa do British Council de organizar a exposição no CCSP, mas gostaria que ocorresse também uma exposição na Inglaterra. Para os programas futuros, Edouard considera que seria importante fazer uma publicação relacionada às residências.
Salientando as dificuldades da experiência, a fala de Edouard Fraipont trouxe para o centro do debate o próprio modelo das residências. E nesse sentido deu-se a intervenção do mediador Fernando Oliva. Fernando leu um trecho de uma entrevista concedida por Pierre Huygue a Doug Aitken, tratando das estratégias de deslocamento e “choque cultural” que supostamente faziam parte do trabalho do artista francês. As respostas de Huygue salientam um lado “não tão sedutor” das viagens. Afirmações como “estou enjoado de me mover o tempo todo (...) algum lugar tornou-se qualquer lugar” e “parte da vida nomádica é uma fantasia capitalista” desconstroem a mitologia de que o trabalho de arte sempre se beneficia do dado exótico. Ao menos para os artistas ditos “jovens”, a participação em residências tornou-se atualmente uma exigência do sistema. Mas a pretensa diversidade de experiências (pretensa porque os lugares cada vez mais se “achatam” e se indiferenciam) muitas vezes substitui o questionamento dos modos internos de operação dos trabalhos, se não da própria condição da arte na sociedade contemporânea.