Cadeiras, Rachaduras e Urubus – O Museu e a Arte Contemporânea
A fala de Moacir dos Anjos pontuou basicamente duas questões: a fragilidade do sistema institucional brasileiro e o embate travado entre o Museu e a Arte Contemporânea. Suas considerações se basearam nas suas experiências/vivências como gestor de museu (quando esteve à frente da diretoria do Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães – MAMAM – de Recife de 2001 à 2006) e como curador.
Determinados artistas na contemporaneidade, segundo Moacir, apresentam propostas artísticas efêmeras, intangíveis e processuais, que negam sua condição de produto finito, colocando em xeque o desejo classificatório e redutor que caracteriza as instituições museológicas, forçando-as a reciclar, rever e ampliar suas estratégias de atuação.
O assunto abordado por Moacir dos Anjos permanece polêmico na atualidade: Arte Contemporânea e o sistema institucional. Desde os anos 60 do sec. XX, a Arte Conceitual entrou em cena para questionar as instituições culturais de uma forma crítica e decisiva, desestabilizando as estratégias de funcionamento de museus e galerias. Tais locais têm como modelo o chamado Cubo Branco, espaço de exposição neutro e asséptico, calcado nas diretrizes lançadas pelo Museu de Arte Moderna de Nova York – MoMA - desde a sua fundação em 1929.
Brian O'Doherty em uma série de artigos publicados a partir de 1972, definiu a galeria e o museu como ambientes sacralizados e distanciados da realidade do mundo. O espaço neutro da galeria e suas normas de conduta sugerem uma atitude quase ritual frente às obras expostas, reafirmando uma certa “teologia” da arte. Sem referência ao mundo exterior, a eternidade é evocada. O visitante, ritualisticamente, deve anular seus demais sentidos: falar baixo, não tocar, mover-se lentamente.[1]
Dessa forma, esse foi (e ainda é em muitos lugares) o modelo do “espaço ideal” de exibição de obras artísticas durante décadas. O curto-circuito ocorre quando o artista apresenta propostas que ultrapassam tal “espaço ideal”, trazendo a tona questões políticas e sociais, ou até mesmo subvertendo tal esquema expositivo, que mostra-se frágil diante das demandas contemporâneas.
Cristina Freire já apontou a necessidade dessa discussão – Arte Contemporânea x Museu – em seu livro Poéticas do Processo: Arte Conceitual no Museu, quando cita um interessante acontecimento que ilustra perfeitamente a necessidade de reformulação das estratégias museais diante de algumas propostas de artistas contemporâneos. Quando Joseph Kosuth apresentou ao MoMA a instalação Uma e três cadeiras (1965) - onde colocou uma cadeira junto à sua fotografia e à definição dicionarizada de cadeira – sua obra foi prontamente mal interpretada:
"Apesar de ter sido adquirida pelo MoMA, essa obra foi destruída ao ser incorporada à coleção do museu, uma vez que a cadeira foi encaminhada ao Departamento de Design, a foto ao Departamento de Fotografia e a fotocópia da definição de cadeira à Biblioteca!"[2]
Joseph Kosuth Uma e três cadeiras (1965)
imagem disponível em: http://lucianotrigo.blogspot.com/2007/11/isto-no-um-debate.html
Essa foi, ao meu ver, uma das principais obras que inaugurou a série de mal-entendidos e contradições travadas entre arte e instituição. Ainda para ilustrar as rupturas causadas por alguns artistas frente às normas, limitações e restrições institucionais, Moacir citou a artista colombiana Doris Salcedo, que “rachou” o chão da Tate Modern em Londres. Segundo o curador, esse tipo de atitude é fruto de uma visão da Política como ato de desestabilização das convenções, e da Arte como geradora de desconcerto e de incômodo. Tais conceitos são defendidos pelo filósofo Jacques Rancière, que Moacir se baseou para declarar: ...é nesse sentido, diz Rancière, que a arte tem uma dimensão intrinsecamente política, não sendo mesmo possível separar a arte da política.
Pensando em uma situação mais próxima do contexto brasileiro, acho que vale a pena citar a polêmica causada por uma obra do artista visual paulistano Nuno Ramos exposta atualmente na 29a edição da Bienal Internacional de São Paulo. A instalação "Bandeira branca" de Nuno Ramos é composta por três grandes esculturas em formas geométricas, cercadas por uma tela de proteção que acompanha o vão central do prédio da Bienal. Dentro desse viveiro improvisado no coração de uma das maiores mostras internacionais de arte contemporânea, 3 urubus permanecem cercados. A instalação possui ainda alto-falantes que tocam trechos das canções "Bandeira branca", "Carcará" e "Boi da Cara Preta". Por conta dessa obra, a abertura da Bienal foi marcada por protestos, em que ativistas exigiam a libertação dos animais. Nesse momento, é impossível não lembrar do incidente de 2008, em que o pavilhão “vazio” da 28a Bienal de São Paulo foi invadido por grafiteiros e pichadores que encheram as paredes com suas marcas/grafismos, resultando na prisão de uma das participantes do “ataque”. O público, portanto, aparece agente ativo, não como mero observador passivo das obras expostas. Se Arte e Política é o tema dessa Bienal, assim como foi um dos temas abordados por Moacir em sua palestra, tais exemplos me parecem contundentes, pois as fissuras e rupturas engendradas pelas obras citadas impulsionaram reações em cadeia por parte do público, que tornaram visíveis, mais do que nunca, os diálogos possíveis entre Arte e Política.
Nuno Ramos Bandeira branca (2010)
imagem disponível em: http://www.flickr.com/photos/ruriak/5013863716/
Uma parte importante do discurso de Moacir dos Anjos foi quando ele citou o aparecimento no Brasil de inúmeros grupos de artistas que buscam circuitos alternativos e plataformas independentes de atuação, numa clara insatisfação frente às instituições culturais. Capacete (Rio de Janeiro), Alpendre (Fortaleza) e Torreão (Porto Alegre) foram seus exemplos. Eu citaria outros, uma vez que os grupos artísticos vêm tomando força no contexto brasileiro de uma forma impressionante: Laranjas (inicialmente formado no Rio Grande do Sul, mas possui integrantes em várias partes do Brasil e do mundo), Poro (Minas Gerais), GIA (Bahia), Opavivará (Rio de Janeiro), EmpreZa (Goiás, São Paulo), entre tantos outros. Pode-se também tomar como um exemplo emblemático as ações do coletivo paulista 3Nós3, atuante nas décadas de 70 e 80 do sec. XX. Em “X Galeria”, vedaram as portas de galerias com um “X”, deixando bilhetes em cada uma com a mensagem: “O que está dentro fica, o que está fora se expande”, numa clara crítica à restrição das obras de arte dentro das instituições, enfatizando a necessidade da busca de novos territórios e circuitos de atuação.
3Nós3 X Galeria (1979)
imagem retirada de: FREIRE, Cristina. Poéticas do Processo:
Arte Conceitual no Museu. São Paulo: Iluminuras, 1999. p.126
Sobre a questão da obra contemporânea em relação ao sistema institucional, Lídice Matos afirma que o artista ao criar sistemas paralelos ao circuito (…) questiona as estratégias e modos dos sistemas vigentes, consciente de que os discursos e ações só são capazes de transformar qualquer sistema quando adquirem visibilidade nesse mesmo sistema. Com isso escapa das classificações institucionais e desestabiliza conceitos e critérios de julgamento de valor[3]. Muitas críticas feitas às instituições artísticas convencionais – na busca por novos territórios para a fruição estética, livres do aparo institucional - entretanto, são engendradas dentro do próprio local questionado; daí o paradoxo: ao mesmo tempo que o museu é contestado, ele é necessário como local de exposição.
Ainda pensando a relação entre Arte e Política, o filme Je vous salue Sarajevo, de Jean Luc Godard., foi apresentado à audiência. Nele, Godard poeticamente afirma: É da natureza da cultura matar a arte, é da natureza da regra suprimir a exceção. Daí o inevitável conflito entre Museu e Arte: o primeiro é da ordem da cultura, é norma estabelecida e aceita por todos (ou quase!). A segunda é aquela que questiona a norma, que subverte os padrões estabelecidos. Nas palavras de Moacir dos Anjos: e é por isso que a arte é tão fundamental no mundo.
Considerando a natureza política da arte contemporânea, seu caráter problematizador e plural, vejo que as fissuras/rupturas engendradas dentro do sistema institucional vigente são necessárias e estão longe de cessar. O modelo do Cubo Branco se mostrou esgotado para muitos artistas, que buscaram – e buscam – novos circuitos de atuação, como é o caso dos coletivos que entraram em cena no contexto nacional e internacional, investindo na disseminação/compartilhamento de informações – propostas muitas vezes intangíveis e desmaterializadas, que negam o estatuto da Arte como produto. Frente às constantes mudanças sociais, culturais e políticas de um mundo globalizado, acredito que muitos serão os desafios das instituições culturais “oficiais” frente às propostas da Arte Contemporânea, e peço licença para usar novamente as palavras do próprio Moacir dos Anjos: E o paradoxo, aqui, é que para se tornar frágil, e assim assumir plenamente e produtivamente essa relação com a arte, o museu de arte contemporânea tem que ser forte do ponto de vista institucional.
Doris Salcedo Shibboleth (2007)
imagem disponível em: http://www.abc.net.au/news/photos/2007/10/09/2054311.htm
[1] FREIRE,Cristina. Poéticas do Processo: Arte Conceitual no Museu. São Paulo: Iluminuras, 1999. p.43
[2] FREIRE, 1999, p.45-46.
[3] MATOS, Lidice. Arte é este comunicado agora - Paulo Bruscky e a crítica institucional. In Concinnitas: Revista do Instituto de Artes da UERJ. Rio de Janeiro, volume1, julho de 2007. p. 121.