MAR

Numa semana quente do outubro de 2013 nós, alunos da disciplina “O Lugar, a Função e o Uso Arte Contemporânea”, da pós-graduação da ECA-USP, fomos numa viagem ao Rio de Janeiro. Foram seis dias intensos de atividades e visitas a pontos de interesse significativos para a discussão relacionada ao título da disciplina. O ponto de partida e chegada das visitas era o MAR, o Museu de Arte do Rio, inaugurado em março, e que funcionou como nosso anfitrião, uma vez que a viagem se deu a partir de um convite de seu diretor cultural, Paulo Herkenhoff. Ao final do dia voltávamos ao MAR para aulas em que membros da equipe do museu pudessem apresentar um pouco do trabalho que vinham desenvolvendo. Inicialmente, tivemos Paulo Herkenhoff apresentando uma panorâmica da história da paisagem do Rio de Janeiro, situando intervenções urbanísticas, museus e o próprio MAR. No segundo dia, tivemos a apresentação de Fabíola López-Durán, pesquisadora de arte e arquitetura do Rio de Janeiro, com a única das apresentações que não se referia ao MAR: apresentou uma pesquisa que põe luz sobre a relação entre modernismo e a eugenia. Depois tivemos Clarissa Diniz, artista plástica, gerente de conteúdo e curadora do MAR, com um texto discutindo o poder transformador da arte e o papel político do artista. Por fim, Janaína Mello, gerente de educação do MAR, e coordenadora da Escola do Olhar, o braço educativo do museu. Vou priorizar, nesse relato, as três apresentações dos integrantes da equipe do MAR, por se referirem a um mesmo cenário, e por se conectarem aos movimentos mais atuais da discussão sobre o lugar e a função do museu e da arte, na atualidade. Palestra de Paulo Herkenhoff Paulo começou com um breve histórico sobre as instituições de arte e as intervenções urbanísticas no Rio de Janeiro, a partir da chegada da família real portuguesa ao Brasil. A vinda da família real balançou a vida da então capital do vice-reino. Grandes transformações urbanísticas foram providenciadas, e Paulo citou algumas obras e artistas envolvidos nessas transformações, com destaque especial para mestre Valentim. A presença da família real e sua imensa comitiva também alavancaram a produção de material visual diverso, desde mapas a cenários de óperas. Também marcou o início de colecionismo que se tornou viável desde que objetos brasileiros, que antes saíam para serem estudados em Coimbra, passaram ser estudados aqui. Destacou a força do barroco colonial brasileiro, em oposição ao rococó, “mais ligado à sutileza da corte européia”, referindo-se à nossa capacidade de transformação de um modelo dado à nossa própria linguagem, tornando-o fruto de nosso contexto. Falou sobre a importância da missão francesa no Brasil e o papel do neoclássico nesse momento. Apontou Taunay como o inaugurador da história da paisagem no Rio. Citou a criação da Biblioteca Nacional, com seu acervo extraordinário trazido de Portugal para cá, da Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios, do Museu Nacional, a partir do acervo da Casa dos Pássaros, e do Jardim Botânico. Então falou um pouco sobre a história do colecionismo de arte no Rio, que estaria na sua pior fase dos últimos 25 anos. Olhando para nossa história, os governos ditatoriais – ironicamente – teriam colecionado melhor que os governos democráticos. Afirmou que uma importante diretriz do MAR é ser um museu de aquisição e não de empréstimo, e que há uma política de doações que contribuirá para a formação de acervo, não só como patrimônio para a cidade do Rio como para o país. Os Centros Culturais, que hoje detém grande parte dos eventos culturais da cidade, estariam com uma opção pela cultura do espetáculo, com grandes exposições que atraem multidões. O papel do MAR, como instituição pública, é ser uma instituição de “processo”, não de eventos. Então pontuou alguns conceitos que norteiam as políticas culturais adotadas no MAR, e de seu papel como museu. Paulo Herkenhoff é muito enfático quando se refere à diretriz primeira do MAR: a educação, e o foco nos oito mil professores da maior rede municipal do país. E também quando afirma que o MAR é um museu local, voltado para a comunidade do Rio, porém aberto à troca de experiências com outras regiões, como, por exemplo, o encontro que estava se realizando ali mesmo, com a USP. Explica rapidamente a origem do MAR – que nasceu de uma vontade política do prefeito, a partir do projeto Porto Maravilha, ao qual é vinculado, como também será o Museu do Amanhã. E que o MAR é apoiado pela Fundação Roberto Marinho, assim como o Museu do Futebol e o Museu da Língua Brasileira, em São Paulo. Palestra de Clarissa Diniz A partir de um contrapondo entre duas ações artísticas que possuíam algo em comum – a exposição do corpo nu do artista –, porém guardando 35 anos entre elas, Clarissa colocou questões relativas à influência do contexto histórico e político sobre a “efetividade” de uma obra. O que é uma proposição revolucionária em dado momento, pode se enfraquecer com a transformação dos lugares e modos de produção da arte. Nos dias de hoje, a atuação dos artistas que trabalham diretamente na questão social, se assemelha às ações corporativas de responsabilidade social. Dessa forma, a arte funcionaria menos como resistência e mais como válvula de escape. Em vez de querer mudar as regras estruturais da sociedade, o artista estaria agindo no sistema para buscar uma transformação do indivíduo. E pergunta: é possível atuar de forma crítica dentro do sistema? Como trabalhar a questão de que essa união de esforços em prol do bem comum é compartilhada não só pelos que produzem arte, mas também pelos principais agentes políticos e econômicos? E como entender o fato de que a arte brasileira, muitas vezes vista como diferente ou exótica, tem sido valorizada por essas mesmas características? Quais as conseqüências de explorarmos nossa subjetividade, a expressão de nossa resistência, a serviço das forças do poder econômico? Palestra de Janaina Mello Num texto sensível, ela nos contou de personagens que vivem nos arredores do MAR: a moça que sempre fica na esquina, a cadela que adotou a calçada do MAR, o Maravilhas do Porto, local onde trabalhadores do MAR se encontram, para uma cervejinha, com trabalhadores do porto, muitos estrangeiros, e um tal senhor Brasil, “barrigudo e de unha comprida”. Partindo de uma fala desse senhor Brasil, num encontro promovido pelo MAR com moradores locais, Janaína falou da “dor da transformação”, referindo-se às famílias que foram desalojadas de suas residências para a construção do MAR. Janaína falou da disponibilidade de escuta do MAR para com os moradores locais e da necessidade de acolhimento dos estudantes que visitam o MAR diariamente, aqui “vir de Irajá até aqui não é o mesmo do que vir de Botafogo”. Mostrou também um vídeo, feito meio por acaso, dum flagrante dos pilotis (“pilotis” é como os funcionários do MAR se referem ao espaço entre os pilares do térreo), quando turmas de duas escolas do ensino fundamental fizeram uma disputa de dança de rua, chamada de “passinho”. Para os funcionários do educativo e os gestores de cultura do MAR, essa ação foi simbólica da apropriação do espaço físico do museu pela comunidade, e muito comemorada por eles. E então contou um pouco sobre as diversas formas de atuação da Escola do Olhar, espaço onde funciona o educativo do museu: a formação de professores (não “para”, mas “com” o professor); programa de acessibilidade (procurando enfatizar os recursos e não as deficiências); da atuação dos educadores em campo, indo até as comunidades (das quais fomos visitar o complexo da Maré e o Conjunto Habitacional Pedregulho); do MAR na Academia (uma programação de filmes e debates com profissionais de cinema); do programa Vizinhos do MAR (com o “café com vizinho”, encontro que procura uma aproximação para gerar projetos em comum); o Projeto Morrinho, cuja maquete que está em exposição nos pilotis é apenas a expressão plástica, mas tem muito mais... Uma série de atividades que prometem ser muito frutíferas para as comunidades, conduzidas de maneira essencialmente colaborativa. Considerações finais A fala de Janaína começou com o texto sobre os moradores dos arredores do MAR, que ela escrevera na noite anterior à apresentação, a partir de uma sensação, vinda do contato que teve, durante a semana, com nossa turma. Acredito que ela tenha sido movida pela percepção de um certo desassossego, por parte da turma de São Paulo: a carga de informações recebidas – nas aulas, das instituições e suas exposições, das comunidades visitadas, da cidade como um todo – e todas as inquietações geradas, estavam aprisionadas no interior da turma, procurando uma brecha para interagirem. Mas não estava sendo possível, no calendário corrido daquela semana realmente imersiva. Havia um debate em estado de latência. A transformação da região do Porto é assunto pulsante no Rio de Janeiro. O MAR, como pedra fundamental desse processo, está numa situação por vezes desconfortável, considerando-se a forte oposição que esse projeto tem gerado. Esse desconforto perpassou, de diferentes maneiras, a fala dos três representantes do MAR que se apresentaram. Ressalto que considero esse desconforto saudável, e seria estranho se não existisse. Esse desconforto perpassou a fala de Janaína, quando falou poeticamente sobre a dor da transformação, como uma instância inevitável da vida. De Clarissa, quando divide a aproximação com o poder com todos os agentes da arte. E a de Paulo.Herkenhoff, quando ilustra com a história como medidas consideradas polêmicas em seus tempos puderam se converter em ganhos para a cidade. Esse desconforto também pôde ser percebido quando, ao falar das diversas atividades a que o MAR vem se dedicando, sempre se refere às quantidades, e quando, ao citar o seu mantenedor, a Fundação Roberto Marinho, refere-se aos museus de São Paulo também patrocinados por ela. Mas esse desconforto se fez sentir, principalmente, pela ligeireza da sua fala sobre o projeto Porto Maravilha. No MAR, mais que em todos os museus do Brasil, a contradição inerente aos museus públicos – de servir ao poder e à comunidade simultaneamente – está fortemente presente. A vocação de museu escola só reforça essa contradição e, portanto, aumenta o desafio. A educação já traz, em si, uma dicotomia difícil de resolver, pois ao mesmo tempo que é um conceito tão ligado a uma idéia de individualidade, os gestores públicos trabalham – e é natural que seja assim – com a idéia de quantidade, que pressupõe uma padronização para que a execução seja viável. Mais do que nunca, o lugar e o uso da arte tem que ser discutidos. A procura não é por respostas, mas pelo debate em si. De todas as críticas que o projeto Porto Maravilha é alvo, a mais grave é a falta de discussão. Devido ao contexto do seu nascimento, como um dos protagonistas nesse projeto, o MAR é convocado incessantemente a discutir a si mesmo, e isso será mais fértil quanto mais for convertido para a efetividade de suas ações. O MAR ainda está construindo seu diálogo com o Rio. Tudo indica que ele se firmará como o museu que pretende ser, expressão do que a cidade precisa de um museu. A postura de priorizar a educação, de ser um museu local, um museu de processo, de investir esforços na formação de acervo, tudo isso o configura num museu que procura preencher lacunas e não foge à responsabilidade. A equipe do MAR mostra ações efetivas de proximidade com a comunidade, respeito às diferenças e às expressões artísticas de todos os posicionamentos. Devido a sua situação de vitrine e às críticas, por vezes acaloradas, o MAR se questiona e traça diretrizes claras e posições assertivas. Mas dúvida também é bom. Desejo muitas dúvidas ao MAR.