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Palestra Profª. Ana Fani Alessandri Carlos: "As contradições da metrópole"

por Yiftah Peled e Mirella Dias

 A proposta da palestrante, em linhas gerais, é buscar uma forma de entendimento da cidade pelo prisma da Geografia, dado que este tema é objeto de estudo de muitas ciências. Que contribuição seria possível dar do ponto de vista da Geografia? Como pensar a cidade pelo espaço?

 

Para iniciar a discussão, foi apresentado um vídeo realizado pela Favela do Real Parque que conta um pouco sobre a mobilização da comunidade contra a desapropriação da sua área de moradia em dezembro de 2007 pelos órgãos governamentais, a favor da reintegração de posse do terreno solicitada pela EMAE (Empresa Metropolitana de Água e Energia). Com fortes imagens da ação violenta da polícia, ao destruir casas e agredir os manifestantes, o vídeo mostra a resistência da população desprivilegiada, brigando pelo seu direito de cidadania em uma São Paulo que é segregada e que revela lado a lado suas contradições: favelas com vista para os grandes prédios da Berrini.

 

Apresentado o vídeo, Profª. Ana Fani inicia sua palestra tratando exatamente dessas diversas formas pelas quais percebemos a cidade: prédios altos e modernos, áreas de ocupação precária, grandes avenidas, pontes e túneis. Porém somente as formas de circulação revelam as forças que organizam essas formas anteriores. De acordo com ela, existem três níveis de poder que definem e se confrontam na configuração do espaço urbano. O primeiro nível, o Poder do Capital, é provavelmente o mais responsável pela forma que São Paulo tem hoje. É uma cidade segregada, pela contradição intrínseca ao processo de sua constituição, que é aquele da reprodução econômica. Este argumento faz todo sentido quando se percebe historicamente que os grandes fluxos humanos para São Paulo vieram em busca de trabalho, como os imigrantes italianos e os nordestinos. Isso se deu porque a cidade se estruturou exatamente como uma metáfora da máquina produtiva, em nome do progresso do país.

 

A reprodução do capital confronta outras necessidades, como, por exemplo, o Poder Político, o segundo nível, que se realiza pela apropriação do espaço e se reproduz pela lei. Por isso, a polícia e a norma são os responsáveis por organizar o espaço, o que significa definir os limites de apropriação do espaço pelo cidadão. O terceiro nível, enfim, é o plano da Sociedade, responsável pela reprodução da vida.

 

A cidade se reproduz como mercadoria pela propriedade privada, dado que espaços têm valor de troca. O acesso aos lugares de vida das cidades passa pela mercadoria. Tem lugar aí o embate entre a necessidade de usar o espaço pela população e a possibilidade de compra do espaço na lógica do privatismo. Essa contradição insolúvel, na cidade produzida pelo capital, gera a segregação, o que não significa necessariamente condomínios fechados. Incluem-se aí todas as apropriações da cidade, como lazer, viver, andar sem destino.

 

Se todas as relações sociais forem pensadas como relações espaciais, por exemplo, aula na sala, amor no quarto, happy hour no bar, implica necessariamente a existência de um espaço para que o indivíduo se realize como ser humano, dado que essas relações de troca precisam de tempo e espaço para a sua concretização. Manford define a cidade como ação civilizatória, isto é, acumulação destes tempos. A cidade, porém, pode ser pensada como uma poética, uma obra de arte. Essa poética colocaria a prática racional forçada pelo capital, economia e Estado, em confronto direto com a cidade do prazer, da criação e da efetivação dos desejos humanos.

 

Lefebvre fala que, para cada sentido, há uma obra de arte: música para os ouvidos, comida para o paladar, escultura para o tato, pintura para o olhar. O ato de criar é o que dá sentido à vida. Uma cidade pensada como poética, como criação, seria aquela cuja apropriação se daria por meio de todos os sentidos humanos. O espaço como extensão do corpo: “cada parte do espaço tem significados especiais para mim”. No Brasil, as cidades atendem particularidades históricas que acirram as suas contradições. No resto do mundo, as cidades capitalistas são partes externas do indivíduo.

 

 Na segunda metade do Século XIX, a cidade começa a se transformar. Baudelaire já falava do sentimento de estranhamento desta cidade mutante: “a forma da cidade muda mais rápido que o coração de um mortal”. As transformações são tão rápidas que uma única geração é capaz de perceber várias mudanças, neste processo de fazer e se refazer. Walter Benjamim, por sua vez, falava que o mundo caminha na direção da queda total dos referenciais, como aconteceu nos séculos XIX e XX na música, literatura (Realismo x Romantismo) e pintura. O Cubismo passa a ver a natureza em formas geométricas, representa a falta de perspectiva, objetos podem ser jogados em qualquer plano, e o espaço perde a sua qualidade. Lúcio Costa, ao construir Brasília, definiu a criação da cidade em duas linhas. A cidade deixa de ser uma construção social, humana e passa a ser um projeto saído da cabeça do arquiteto. Este é o limite da queda dos referenciais e é o espaço do capitalismo. Um espaço homogêneo, porém fragmentado, ao ser tratado por lotes como mercadoria. Essa é a essência da segregação.

 

Profª. Ana usou metáforas artísticas na sua apresentação para fortalecer uma
idéia de esvaziamento do espaço moderno. Essas referências sobre a arte na
palestra terminam no Cubismo e no processo moderno. A complexa e
diversificada arte moderna suscita reflexividade e momentos críticos sobre
processos modernos e exige uma análise cuidadosa.

 

Se considerarmos como os artistas se organizam numa condição pós-industrial
frente às realidades urbanas das cidades modernas, então parece relevante
uma comparação da visão da Profª. Ana com as idéias do grupo de artistas
ativistas do Situacionismo, uma vez que muitas das idéias apresentadas ecoam
no referido movimento. Já em 1958, Debord apresenta em um manifesto
Situacionista uma visão contra o "urbanismo unitário", uma idéia de
"criatividade coletiva".

 

De acordo com Andrade (2003: 11), o Situacionismo "buscava a constituição de
novas territorialidades que resgatassem as múltiplas formas de nomadismo que
as cidades modernas foram progressivamente esquadrinhando, restringindo,
fixando, confinando, com o fim de aniquilá-las por completo". Segundo o
autor, o Situacionismo propunha participação ativa de seus habitantes e
sugeria a deriva na cidade como solução às restrições. A cidadania é
retomada através da resistência em ações vivas.

 

Dado o acirramento dessas contradições e o loteamento dos espaços em propriedade privada, somente o Estado pode realizar as grandes intervenções necessárias e tornar o privado em público, desde que atendendo os desejos do capital. A Berrini e todo o seu complexo arquitetônico, por exemplo, fizeram-se pela demanda de ter uma via de transporte rápido e conectar-se à área central do capital financeiro. A operação urbana, assim, faz-se por meio de grandes desapropriações, e a valorização da cidade acontece por meio de lutas, como vistas no vídeo. Estado e capital visam à reprodução econômica, enquanto a população tenta defender a reprodução da vida no espaço que entendia como conquistado. As operações urbanas não são feitas, portanto, com o intuito primário de melhorar a vida da população. Porém, para conseguir o apoio desta mesma opinião pública, usa-se a ideologia do progresso e da modernidade.

 

E nesse panorama traçado, a Profª Ana Fani questiona o que aconteceu com a vida. Ela é a análise da cidade, pois é onde acontece a prática social, é o espaço e tempo da vida, em que se constroem referências a partir da casa: o outro, o vizinho, a rua. Quando os espaços são transformados, modificam-se os lugares onde se realiza a vida. O indivíduo define sua identidade por meio da realização de atividades com o outro. Assim esta identidade é prática e real, capaz de sustentar a memória. Por este raciocínio, a cidade passa a ser identidade também. Porém o que acontece quando as referências se perdem? A cidade passa a ser somente um quadro físico, onde se movem pessoas conforme a racionalidade do capital, cujos objetivos assumem a direção da intervenção urbana. Esta deixa de ser reflexo das atividades que definem a identidade humana e assume a forma condizente com a circulação do capital.

 

É assim que se dá o esvaziamento da favela: as pessoas, os vizinhos, os pequenos comércios são retirados, isto é, perdem-se as referências, e o espaço é revalorizado para fins de maior lucro. A rua, funcionando somente em horário comercial, fica escura, hostil às pessoas e causa estranhamento. Dessa forma, a cidade reduzida a sua funcionalidade econômica destrói a sociabilidade, porque elimina o espaço público. O bairro da Berrini tinha uma vida tradicional que foi destruída, todos os lugares de sociabilização sumiram. A operação urbana eliminou o senso de comunidade e o espaço da sua realização. E quais os impactos na vida cotidiana? As crianças passam mais tempo na frente da TV, a relação de vizinhança se torna estranha e o contato social é raro. O lazer fica subjugado à lógica do lucro por meio dos shopping centers. Surgem novas e mais poderosas formas de controle, do trânsito, da rua. A vida privada termina na porta de casa, e o espaço público é o espaço do medo.

 

A complexidade do poder e as contradições entre o avanço econômico e as
condições sociais convidam para uma análise cuidadosa sobre os mecanismos de
poder do contexto brasileiro.

 

Ressalta-se a participação da "intelectualidade" no processo de legitimação
da destruição da favela que a palestrante apontou. Também a polícia,
mantida pelo poder público, tentou destruir a favela e é paradoxalmente
composta, em parte, por moradores da periferia da cidade. Isso mostra que a
produção do poder tem uma repressão produtiva, como Foucault (1975: 196), em
Vigiar e Punir confirma: "é preciso sempre parar de descrever os efeitos do
poder em termos negativos; ele "exclui", ele "reprime", ele "recalca", ele
 “censura", ele "abstrai", ele "mascara", ele "esconde". De fato, o poder
produz: ele produz real; produz domínios de objetos e rituais de verdade".

A sofisticação de um poder produtivo do consumo na Berrini, com seus
shopping centers, seguranças e passagens que evitam a rua, mostram a
sofisticação das formas que Foucault (1975: 139) define como "métodos que
permitem o controle minucioso das operações do corpo, que asseguram a
sujeição constante de suas forças e lhe impõem uma relação de
docilidade-utilidade".

 

Historicamente, a Pólis grega era utilizada como parâmetro para definir a cidade, cujo lugar de exercício da cidadania era a Ágora, a praça pública. Neste ponto, a Profª Ana Fani nos aproxima metaforicamente mais dos speaker´s corners, de Londres, onde só se pode falar livremente em cima de uma plataforma, por não se estar pisando no solo inglês, e o debate não é livre. Portanto, quando se fala do espaço público como local de realização da vida, percebe-se que ele se transformou em sua negação e não na Ágora. As praças e parques da cidade são rapidamente transformados em espaços de lucro. A autofagia se prolifera nesta dinâmica que exclui aqueles que não se encaixam no perfil econômico do local a fim de lotear e vender os espaços, destruindo-os para reconstruir em cima. E talvez seja mesmo por isso que é tão difícil definir uma imagem emblemática de São Paulo, uma cidade cuja tradição é não ter tradição, pois está sempre se refazendo para atender melhor a circulação do capital.

 

A palestrante conclui, enfim, que a segregação é a justaposição da morfologia social (pela renda) e da morfologia espacial (pelo preço da terra). O processo de produção capitalista da cidade a transforma em um espaço sem espessura, homogêneo. O cidadão passa a ser um usuário ou consumidor da cidade, mas não consome espaço para a vida. A sugestão é de que o cidadão pudesse ser um usador, que usa a cidade criativamente, pois o futuro reside na força que os movimentos sociais possam ter para construir uma cidade como poética, criativa. Negaria a construção da cidade mercadoria a exemplo do modelo de Barcelona e Curitiba, cidades para os cidadãos.

 

Pode ser pensada ainda, em adição à sugestão da Profª Ana Fani, a possibilidade de uma reconfiguração desta cidade de um ponto de vista prático, dentro do próprio sistema mercadológico. O cidadão consumidor/usuário tem poder se ele usar sua ferramenta de consumo para dirigir suas expectativas. Existem vários casos em que o desejo do consumidor foi suficientemente forte para modificar os rumos do mercado. Se pudermos pensar que a cidade se estrutura pelo capital, cuja conquista se dá em última instância pelo consumo, o consumidor tem poder de definir como o capital pode modificar a cidade, desde que tenha consciência disso. É o caso do incipiente, porém em crescimento, consumo de produtos ecológicos e alimentos saudáveis. Talvez ainda seja possível ser otimista pensando não em lutar contra o modelo, mas em pressionar sua mudança dentro de sua própria lógica.

 

Após finalizar a palestra, abriu-se espaço para questionamento do público.

 

Ana Maria Tavares: como a lei está voltada somente para os mecanismos de poder, como haveria espaço para a criatividade?

 

Profª. Ana Fani: o ponto é que não é somente a lei. Logicamente, no caso da favela do Real Parque, Paulo Maluf como prefeito tinha o direito de desapropriar a área, porém, além disso, ele recebeu apoio da intelectualidade. Uma equipe de engenheiros, arquitetos, assistentes sociais elaboraram um documento que dava o aval técnico para a operação. Isto baseado nos seguintes motivos: não havia nenhuma construção no local a ser preservada/tombada e não havia área verde. Ademais, mesmo com a manifestação por mais de dois anos da população local contra a desapropriação, técnicos e mídia ajudaram a passar a idéia de que a população desconhecia os benefícios estéticos da operação e que era resistente ao progresso. Os manifestantes foram chamados de “os históricos”. A modernidade, então, caracterizada pelo tempo efêmero também deve ser pela produção de espaço amnésico.

 

Mirella Dias: temos visto a migração dos supermercados das grandes cadeias para modelos menores, de bairros, mais próximos da população, numa volta aos modelos que existiam no passado. Isto parece ser um movimento solicitado pela população. Há esperança de que esta sociedade seja capaz de mudar o modelo mercadológico em seu favor?

 

Profª. Ana Fani: não se trata exatamente de voltar ao passado, mas de se construir a cidade que se quer. Neste ponto vale a diferenciação da gestão democrática (que acontece nos orçamentos participativos) e da gestão estratégica (onde as pessoas participam, como em Barcelona). No Brasil, fala-se do orçamento participativo como uma grande conquista para o cidadão, porém ter teto e comida não significa reconquistar o direito à cidade. É preciso se redefinir o que é direito à cidade, deveria ser o espaço onde acontece a realização do humano.

 

Yiftah Peled: Gostaria que você esclarecesse o ponto feito sobre Curitiba como modelo. Já vivi lá e tenho algumas críticas nesse sentido. E o segundo ponto é como podemos pensar em mudança se a mídia é controlada pelo próprio poder do capital?

 

Profª. Ana Fani: Quando falei de Curitiba me referia ao governo de Jaime Lerner espelhado no modelo de Barcelona. No caso da mídia, de fato, ela tem a lógica do privado, e as resistências não têm força para crescer. O problema é que elas são pensadas e inspiradas por modelos externos. Talvez fosse o caso de se pensar uma solução interna.

 

BIBLIOGRAFIA

 

ANDRADE, Carlos Roberto Monteiro. Prefácio. Pp.11. In: BERENSTEIN, Jaques
(org). Apologia da Deriva/ Internacional Situacionista. Escritos
situacionais sobre a cidade. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003.


DEBORD, Guy-Ernest. Posições situacionistas a respeito do trânsito. Pp.
112-113. In: BERENSTEIN, Jaques (org). Apologia da Deriva/ Internacional
Situacionista. Escritos situacionais sobre a cidade. Rio de Janeiro: Casa da
Palavra, 2003.


FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 1997.