Exposição Campo Coletivo: curadoria de Fernanda Albuquerque e Gabriela Motta
O fato de ser proposta por mais de uma pessoa garante que uma intervenção artística seja coletiva?
Embora a idéia original deste relato fosse cobrir a visita com a curadora Fernanda Albuquerque à exposição Campo Coletivo, buscarei fazê-lo a partir de um outro ponto de vista: o de artista de um dos coletivos que participa da exposição. A exposição consiste em uma “coletiva de coletivos”, nas palavras das próprias curadoras Fernanda Albuquerque e Gabriela Motta. A idéia inicial era reunir alguns coletivos de artistas brasileiros e realizar uma exposição coletiva deste grupos. A “pegada|” da expressão “coletiva de coletivos” é bem humorada ao confundir dois usos distintos do termo de coletivo.
Participam da exposição os coletivos Poro, Gia, Laranjas, Cine Falcatrua, Espaço Coringa e Base Móvel. São grupos que surgiram na “febre” de criação de coletivos de artistas no início desta década e que buscavam gerar circuitos alternativos ao do “sistema da arte”, assim como abordar assuntos da esfera pública - muitas vezes com conteúdo político - de uma forma diferente da que costuma ser abordada pelo circuito artístico “oficial”.
Tal impulso urgente e ansioso por ação muitas vezes correu o risco de cair em intervenções urbanas demasiado literais, onde conteúdos políticos eram abordados de forma direta, como se o conteúdo tratado pelas ações fosse o que determina se eram ou não políticas e engajadas. Muitas vezes, também de forma quixotesca, os coletivos se colocavam contra as “instituições da arte”, justamente porque estas representavam a arte protegida e afastada da grande maioria da população, que se encontra nas ruas. Um lema poderia ser: “Levemos então a arte para as ruas e assim a tornaremos acessível a todos”, sem a necessidade de ser mediada por instituições e galerias de arte. O acesso físico das “pessoas” da rua aos trabalhos de arte garantiria assim a sua fruição da arte, que até então estaria afastada da massa pelo elitismo e imponência das instituições culturais.
É, sem dúvida, uma bela bandeira, principalmente por contrariar uma lógica atual do esvaziamento de função e significado de todas as iniciativas e atitudes literalmente políticas, já que “o sistema é perverso demais e acaba engolindo toda e qualquer forma de resistência”. Tal pessimismo passava longe da maioria dos coletivos, que acreditavam que suas ações realizadas diretamente no espaço público (entendido por eles como o espaço das ruas) teriam um poder transformador e desanesteziador da população carente de arte e manifestações de liberdade. Um risco seria o de cair numa abordagem nostálgica de movimentos e manifestações políticas em espaço público dos anos de 1970. Aliás, alguns pensadores insistem que esta nostalgia seria saudável e estaria resgatando o espírito político e politizador da manifestações de rua daquela época.
Hoje, parece ser irônico que os coletivos tenham sido “dobrados” e participem de uma exposição em uma instituição cultural, por mais que seja uma instituição pública e com uma história de resistência à ditadura. Também pode parecer irônico que os coletivos tenham se submetido ao “poder curatorial”, por mais que sejam duas curadoras jovens e bem intencionadas. Queremos acreditar que fazer as pazes com a instituiçao da arte seja um sinal de amadurecimento dos coletivos, ou um sinal de que haveríamos passado para uma segunda fase, que percebe a instituição como parceira e um lugar possível para constituir uma reflexão crítica, e auto-crítica. Tal reflexividade teria sido um dos pontos faltantes da primeira fase dos coletivos, no seu afã e urgência de intervenção na malha da cidade. Diga-se de passagem que a idéia de cidade atuava neste momento não incluía as instituições de arte e nem os lugares que têm teto.
Talvez o entendimento de esfera pública também esteja mudando nesta segunda e mais madura fase, deixando de ser tão literal como a ocupação das ruas da primeira fase e passando a ser de uma ordem mais complexa, que pode estar envolvida em qualquer relacionamento humano, seja ele dentro ou fora da instituição. De qualquer forma, a sensação de que “estamos sendo domados pelo sistema” nesta exposição sempre esteve presente nas discussões entre os coletivos e as curadoras no período que antecedeu a abertura da exposição. Uma solução para este impasse que esteve presente para diminuir o tal gosto de cooptação foi a de pensar que não estaríamos diante de uma exposição de coletivos, mas de uma exposição da documentação gerada a partir das ações deste coletivos, como se isso de alguma forma diminuísse a responsabilidade dos grupos pelos encunciados ali propostos. Seria assim uma das estratégias usadas para “levar os coletivos para dentro da instituição”.
Outro risco que me parece correr tal recorte curatorial é o de pensar os coletivos como uma categoria artística, assim como o é a pintura, a gravura, a instalação, etc. Tal risco estaria em utilizar justamente o critério de ser coletivo como o predominante na escolha dos grupos. Mais do que a forma de pensar ou de agir, o entendimento de “coletivo” parece ter vindo de uma análise formal do que seria um coletivo, entendido como ações artísticas que são propostas por mais de uma pessoa. Tanto que não encontramos nenhum artista “sozinho”, mas que pense de forma colaborativa, que integre a exposição. Um exemplo disto seria o trabalho “Restauro” que a artista Carla Zaccagnini realizou no Centro Cultural São Paulo, que embora tenha sido proposto por uma artista só, envolvia outros atores e a própria instituição ao gerar um “estado colaborativo” na realização de sua intervenção no acervo da instituição.
Penso que o entendimento de uma ação coletiva vai além da idéia de que esta tenha sido proposta por uma ou mais pessoas. Ter sido proposto por um grupo não garante em nada que o modo de pensar seja coletivo. Pelo contrário, muitas vezes, o fato de ser proposto por um grupo de pessoas pode confundir uma ação conservadora com uma contemporânea (atribuindo um valor de vanguardismo ao “ser contemporânea”) por usar uma roupagem atual. Muitas ações de coletivos podem muito bem entender o seu espaço de atuação como uma tábula rasa e neutra, onde podemos intervir da forma como nós achamos ser a correta, pensamento politicamente suspeito e retrógado. Tal arrogância está longe de ser coletiva, pois não percebe que não somente a proposição deve vir de um grupo, mas que este grupo deve exercitar a sua capacidade de “escuta” do seu local de ação, pensando assim de forma colaborativa com este lugar e engajando de fato os seus habitantes (não somente humanos!). Esta preocupação abandonaria o ponto de vista “privilegiado” da arte e do artista e priorizaria um ponto de vista comum, que forma uma comunidade.
A obra “Restauro (Almeida Júnior), 2001” de Carla Zaccagnini consistiu na coordenação do restauro da pintura “Cabeça” de Almeida Júnior, peça integrante do acervo do Centro Cultural São Paulo, local onde a artista propunha esta intervenção como sua exposição individual. A operação demandou uma série de negociações com a instituição e curadoras, entendidos então como colaboradores do projeto.
Penso ainda que esta reflexão deveria incluir uma reflexão crítica sobre o próprio método de ação do artista, mais do que a insistência em um entendimento formalista de que a proposição feita por um grupo de artistas, que usa a arte como álibi, garantiria o seu caráter colaborativo, político e libertador do Outro. Mais correto assim seria assumir o formalismo, e dedicar-se à pintura, cerâmica, escultura, a partir de um entendimento do espaço público assumidamente modernista, sem o travestismo de contemporâneo. Perdoem-me os pintores, ceramistas e escultores, pois o meio que usam também não pode reduzí-los a posição de individualistas malvados. Há muitos pintores, escultores e ceramistas que são coletivos e colaborativos em seu modo de pensar.
Tais simplificações do entendimento de arte de uma maneira formal parece assolar muitos dos coletivos que tem pouco conhecimento da história da arte, suas rupturas e complexidades. Esperaria-se que tal conhecimento fosse libertador de abordagens que correm um imenso risco de serem literais e rasas, ou no mínimo desinformadas, ahistóricas por ignorância (de ignorar). Também nos daria o ponto de vista, aí sim privilegiado, de que um artista, mesmo agindo “sozinho”, pode ser revolucionário no seu modo de pensar e agir, ao refletir não somente sobre o conteúdo de suas ações, mas ao modo como atua em colaboração com o que lhe cerca. De um ponto de vista pessoal (e/ou coletivo), interesso-me pelas ações que tem a coletividade embutida em suas ações e na sua forma de agir, seja ela proposta por um, dois, ou uma multidão.
Exemplo negativo que me ajuda a tomar este ponto de vista foi uma intervenção urbana que presenciei, realizada recentemente em Ouro Preto, Minas Gerais, durante um festival de arte na cidade. A ação proposta por um coletivo consistia em jogar do alto de uma igreja uma série de poemas impressos em folhas de papel coloridas para que a população lesse e se sensibilizasse pelo seu conteúdo poético, numa atitude de “Vamos levar a poesia para todos!”. O resultado foi que pouquíssimas pessoas interromperam o seu fluxo pela cidade para se agachar e pegar um papel que não se diferenciava em nada de panfletos comumente distribuídos no comércio, que só geram a antipatia de quem os recebe sem ter solicitado. Um outro ocorrido desta situação que revela a sua arrogância, e que usa a arte e a poesia como álibis para tal, está no que foi dito pelas varredoras de rua que enxergavam atônitas a imensa quantidade de papel (sem enxergarem aquilo como poesia), que era despejada na rua e que teria que ser limpas por elas.
Uma exclamação em tom indignado que ouvi foi: “Esse pessoal não tem mãe para ficar sujando as ruas desse jeito e depois deixar para a gente limpar?!”. Este me parece ser um caso clássico de uma ação que se coloca como coletiva, pois é proposta por um grupo de pessoas, que garante o seu caráter interventivo em espaço público por ser feito na rua, mas que não leva em conta nem minimamente o contexto onde está atuando. Pressupõe que haja o interesse da população local na sua poética, pois “poesia é arte”, e “toda arte deve ser disponibilizada para o povo”. O fato de sujar as ruas com papel é ignorado num ato cênico de que acontece a partir do topo de um prédio histórico. Talvez em busca de satisfação pessoal, e egoísta, tal ação usa a arte como álibi para desperdiçar papel e gerar a indignação daqueles que cuidam da manutenção das ruas, além do que desconhece (ou ignora) as consequencias ecológicas de tal arrogância e desperdício implicados em uma “chuva de poesia”, ou papel.