Clark & Oiticica
PRODUZIR TRANSFORMAÇÕES: essa fórmula permeou o trabalho dos artistas brasileiros Hélio Oiticica e Lygia Clark. Significava, por um lado, o engajamento radical em suas próprias vidas, vivendo um processo de permanente atualização através da auto-construção, desconstrução e experimentação. Diferentemente dos artistas da body-art, entretanto, o suporte principal do trabalho de Oiticica e Clark não era seus corpos próprios, mas os corpos de outros: o padrão
VOCÊ o espectador
EU o artista
foi sensoriamente revertido por eles no fluxo conceitual
VOCÊsetornaráEU1
não através de uma simples inversão especular, mas no sentido de mover ´VOCÊ´ da posição passiva de espectador para o papel ativo e singular de ser o sujeito de sua própria experiência.
Seja o conceito de Crelazer de Oiticica ou os Objetos Relacionais de Clark, suas proposições sempre convidaram VOCÊ a ativá-las, a ´conectar-se e ser conectado´. O termo “participante-obra”2 apareceu como uma nova entidade, formado ao mesmo tempo pela adição corpo + objeto de arte, tecidos biológicos + materiais manufaturados/industrializados. Como se ´VOCÊ´ tivesse em suas mãos uma ferramenta como extensão de seu corpo, mas para trabalhar em si próprio. As peças de Clark e Oiticica podem ser consideradas extensões sensoriais de duas maneiras: primeiro, no sentido de expandirem a consciência, gerando uma quantidade adicional de incremento sensorial que conduz efeitos transformativos para o corpo-mente. Lygia Clark escreve sobre um processo de “metabolismo simbólico”3, o que significa que a transformação não é de tipo metafórico: a interface corpo/objeto (via dimensão sensorial) opera um amálgama de signos orgânico-conceituais que criam novas funções no corpo.4 Em segundo lugar, no sentido da produção de um tipo diferente de tempo-espaço através da atividade expressiva do participante-obra, concebido por Oiticica como “inter-corporal”. Atuar com o Parangolé é um ato de participação “ambiental”, parte da “criação de um mundo ambiental.”5 Essa conexão corpo/objeto/mundo é expressa por Clark em seus conceitos de “Corpo Coletivo” e “Arquitetura Biológica Viva”, ambos envolvendo proposições que interligam mais de um participante e que, não tendo “nenhum lugar a priori para acontecer”, criam o ambiente através de “expressão coletiva”.6 Todos esses espaços orgânicos mediados por objetos/materiais podem ser caracterizados como espaços sensório-conceituais, uma vez que são gerados através de um processo de sensibilização que é metabolizado em um ambiente codificado de forma nova. Aqui estamos muito próximos do hiperespaço informacional.
A importante descoberta de Lygia Clark e Hélio Oiticica consiste em como operar o fluxo sensório-conceitual como um fator duplo. Assim, puderam escapar das limitacões implícitas tanto no mutismo da abordagem fenomenológica, quanto na cegueira do reducionismo cognitivo. Seus trabalhos podem ser definidos como tecnologia de pensamento sensorial – um modo de induzir processos transformativos. É importante notar que seria impossível projetar qualquer proposição sem a noção aberta de movimento “como uma estrutura total”7, que permeia seus trabalhos e conceitos. Produzir transformações, então, deveria ser visto não como uma qualidade, mas como uma condição ou propriedade do movimento.
Com Hélio Oiticica e Lygia Clark podemos perceber uma estranha convergência entre o sensorial e o digital, que as novas tecnologias ainda não são capazes de operar. Mesmo se os dados não estão digitalizados, a experiência de seus trabalhos produz informação virtual numa espécie de estado não processado, que é convertida – progressivamente modificada através da transdução8 – em conceitos que são incorporados pelo participante. Isso significa que pela sensorialização é possível dissolver e processar qualquer signo material, do mesmo modo que computadores desintegram realidade em dígitos. Hibridizar com um computador hoje é ainda uma interação sensorial pobre, quando comparada com a hibridização com um Parangolé: há uma falta de ressonância orgânica nos bytes de informação daquela, enquanto que os quanta sensoriais desta proliferam pelo corpo. Parece necessário mover os computadores para além de processos cognitivos formais para se ganhar uma compreensão expandida de realidades sensório-conceituais.
QUE TIPO DE TRANSFORMAÇÃO queremos promover? Cuidado, não responda agora, seja cauteloso para não cair nas armadilhas dessa pergunta ardilosa: se um ‘projeto de metamorfose’ soa como um oxímoro, é porque o processo transformacional não está submisso a uma relação linear de causa-efeito. Quando Lygia Clark e Hélio Oiticica querem liberar e expandir o corpo-mente, estão lutando contra as limitações sociais, culturais e políticas de seu tempo, estabelecendo uma estratégia eficaz para um combate concreto. Isso permite que permeiem suas proposições com um sopro de utopia, no sentido do permanente engajamento na criação de um homem/mulher desreprimido. Está claro, então, que qualquer projeto em direção à transformação não adota uma metodologia neutra, para liberar o movimento: um (amplo) projeto político sempre perpassa o programa. Em termos de transformação, nunca se deve tentar predizer resultados. É mais sábio confiar que movimento e vida sempre criam condições para vida e movimento continuarem.
1 No original: “YOUwillbecoME”. Fernando Gerheim sugere seguir a estrutura fonética do original, propondo, como ‘livre tradução do intraduzível”, a versão “EUvouSER” / “EUvoCÊ”. (N. do R.).
2 Hélio Oiticica, "Bases Fundamentais para uma Definição do Parangolé", "Anotações sobre o Parangolé”, “Crelazer”, in Hélio Oiticica (catálogo), Galerie Nationale du Jeu de Paume, Paris, Projeto Hélio Oiticica, Rio de Janeiro, Witte de With, Roterdam, 1992, pp. 85-88, 93-96, 132-138. Crelazer = criação + lazer: “o mundo que se cria no nosso lazer (...) como o ápice dos desejos humanos.” p. 136
3 Lygia Clark, “The Relational Object”, 1975-1980, Flue (Franklin Furnace, New York), vol. 3, n. 2, Spring 1983, p. 26; “Memória do Corpo”, in Lygia Clark, Rio de Janeiro, Funarte, 1980; citado em Guy Brett, “Lygia Clark: The borderline between art and life”, Third Text, n. 1, (Autumn 1987), pp. 65-94. “Os Objetos Relacionais não possuem identidade própria (...). São definidos a partir de suas relações com a fantasia do sujeito.”, p. 91. Para outras referências sobre Lygia Clark cf. Guy Brett, “Lygia Clark: In search of the body”, Art in America (July 1994): pp. 56-63, 108; e Lygia Clark, “Nostalgia of the Body”, October 69 (Summer 1994): 85-109.
4 Lula Wanderley, terapeuta brasileiro que vive e trabalha no Rio de Janeiro, pratica a metodologia de Clark no tratamento de psicóticos. Referindo-se a um de seus casos, ele escreveu que os Objetos Relacionais “criaram ´órgãos´ no corpo de Romilson, um corpo que estivera vazio.” Lula Wanderley, “Isaura”, “Romilson”, “Maria Clara”, manuscritos não-publicados, posteriormente reunidos em O Dragão pousou no espaço: arte contemporânea, sofrimento psíquico e o Objeto Relacional de Lygia Clark, Rio de Janeiro, Rocco, 2002.
5 Oiticica, p. 86.
6 Lygia Clark, “O Homem como Suporte Vivo de uma Arquitetura Biológica Imanente”, in Arte Brasileira Hoje, Ed. Ferreira Gullar, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1973, pp. 159-160.
7 Guy Brett, Kinetic Art: The language of Movement, London, Studio Visa, 1968.
8 Gilbert Simondon, “The Genesis of the Individual”, in Jonathan Crary e Sanford Kwinter, Eds., Incorporations, New York: Zone Books, 1992, pp. 297-319. Transdução “denota um processo (...) no qual uma atividade gradualmente coloca-se em movimento, propagando-se em uma área dada, sobre a qual opera. Cada região (...) serve para constituir a próxima de tal maneira que no momento mesmo em que essa estruturação se efetua há uma modificação progressiva ocorrendo em conjunto com ela. (...) O processo transdutivo é, assim, uma individuação em progresso. (...) Os termos finais aos quais o processo transdutivo finalmente chega não pre-existem ao processo.”
Texto escrito originalmente em inglês, Publicado em Blast 4: Bioinformatica, New York, X-Art Foundation, 1994. Tradução de Paula Braga, com revisão do autor.
Ricardo Basbaum é artista, escritor, crítico, curador, e professor do Instituto de Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.