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Marcel, 30 - Conferência 4

28/01/2006 Relato da Conferência: “Deslocamentos Rítmicos: o artista como agenciador, como curador e como crítico” - Ricardo Basbaum
Apresentação
Programação
Documentação

 

Em Marcel Broodthaers, obra e atuação do artista amalgamam-se. A partir dessa constatação, Ricardo Basbaum apresentou a noção de “artista enquanto dispositivo de atuação”, que desloca a atenção do objeto produzido pelo artista para a “imagem de si mesmo” construída pelo artista no momento da produção da obra.

Broodthaers é um desses artistas cujos aspectos fortes e interessantes do trabalho residem sobretudo em decisões relativas à sua atuação, através de gestos que se estendem para além do instante de produção da obra-objeto e tocam os contornos do sistema de arte em suas diversas instâncias de agenciamento, comentário e construção do evento. Há em procedimentos deste tipo um inevitável olhar sobre si mesmo – não enquanto indivíduo ou sujeito psicológico – mas acerca do dispositivo de atuação que está sendo construído, isto é, a figura do artista, a imagem do artista, o tipo de artista que está sendo produzido no momento mesmo de produção da obra.

Na arte contemporânea, esse tipo de procedimento de construção da imagem do artista vem à tona também nas proposições da arte conceitual e na “body art “ que, `a medida em que discutem os deslocamentos entre arte e vida, engajam o corpo como ferramenta de trabalho e elaboram a “imagem de artista” para interceder no circuito artístico. Comentando estratégias de Allan Kaprow e Vito Acconci, Ricardo Basbaum indicou poéticas e atuações onde o corpo do artista – em registros particulares em cada caso -- transforma-se em instrumento de trabalho na reinvenção de si mesmo.

Outra relação construída pelo palestrante entre a obra de Acconci e Broodthaers foi o fato de ambos terem migrado da literatura para o campo das artes visuais. O salto ou passagem para um novo circuito requer a reinvenção do artista, ou seja, a sua adaptação ao novo contexto no qual ele se insere. Uma prova disso seria a famosa afirmação de Marcel Broodthaers sobre a insinceridade de seu trabalho (“A idéia enfim de inventar alguma coisa insincera me veio à cabeça e de uma vez por todas me pus a trabalhar”) que indica que sua imagem como artista é uma ficção (insincera) criada por ele próprio. Na obra de Broodthaers esse deslocamento do circuito da literatura para o da arte é explicitado em Pense-Bête (1964) que, como salientado por Basbaum, é “uma peça-chave neste deslocamento, por constituir-se ao mesmo tempo em título de seu último livro e de um objeto-assemblage.” Basbaum refere-se, através da metáfora da metamorfose do poeta em artista, ao dinamismo da atuação do artista no circuito de arte contemporânea, que requer deslocamento e reinvenção constantes, bem como a disposição de assumir diversos papéis no sistema (artista, curador, crítico, galerista, etc.). A multiplicidade de atuações chega ao ápice na obra de Broodthaers com a fundação do Museu de Arte Moderna, Departamento das Águias, em 1968.

Vale a pena mencionarmos aqui o final de palestra proferida por Jürgen Harten, na qual o palestrante apresentou uma foto de Marcel Broodthaers caracterizado como diretor de museu, ou a referência feita por Stéphane Huchet à obra “Caçarola e mexilhões fechados”: os mexilhões fechados criam seu próprio molde.

Na segunda parte da sua apresentação, Ricardo Basbaum buscou um “diálogo produtivo” entre as questões levantadas sobre a obra de Marcel Broodthaers e a condição do artista contemporâneo. Para exemplificar a amplitude da atividade artística na contemporaneidade e os diversos papéis assumidos pelos artistas no circuito de arte, o palestrante destacou o papel ativo do artista contemporâneo que além de lidar com as questões formais de sua obra também intervém no agenciamento e inserção dessa obra nas diversas instâncias institucionais. Esse papel ativo do artista contemporâneo remonta às vanguardas históricas nas quais a defesa pela autonomia da arte não impediu a diversidade de práticas e papéis assumidos pelos artistas:

ao voltarmos os olhos para o panorama das primeiras décadas do século XX – em que emergiram algumas das principais vanguardas históricas – constatamos que a articulação das linguagens plásticas que se queriam puramente autônomas se dá de maneira concreta a partir de um franco deslocamento dos artistas pelo que estamos denominando como práticas de agenciamento, curadoria e crítica: estes artistas desenvolveram aguda elaboração discursiva e conceitual sobre seu fazer, agenciaram seus próprios eventos e projetos editoriais, organizaram as exposições individuais ou de grupo que deflagraram movimentos, etc. Cada uma destas práticas, então, se dava também enquanto invenção de linguagem, não existindo isoladas das investigações ‘autônomas’ do campo plástico.

A partir dessa referência histórica, Basbaum problematiza o processo de especialização do circuito de arte apresentando três aspectos centrais que direcionariam a intervenção do artista no contexto atual, intervindo no “sistema de arte hiper-institucionalizado de hoje e em suas relações com o tecido social”: desnaturalização do circuito da arte (não tomá-lo como pronto nem como única possibilidade), politização da sua rede de relações (”recuperar assim possibilidades de tecer outras conexões, desfiá-las, atar e desatar nós, movendo-nos em grupos e coletivos, propondo alianças ou produzindo desvios”) e atuação nos dispositivos arte&vida objetivando a incorporação do gesto do espectador. Os três termos apresentados (desnaturalização, politização e arte&vida) seriam “palavras de ordem” na atuação do artista contemporâneo no circuito de arte. Citando Basbaum, “a mobilização de cada um destes traços produz a dinamização inicial que auxilia na movimentação menos previsível do circuito de arte.” No entanto, Basbaum adverte que a intervenção no sistema segundo essas “palavras de ordem” precisa articular-se com as poéticas. Atuação no circuito e “poema” andam juntos. Citando Alain Badiou, Basbaum afirma que “’a singularidade do pensamento’ (o poema) não pode ser substituída pelo ‘pensamento desse pensamento’ (a filosofia)”.

Basbaum então focou sua apresentação em três atuações capazes de deflagrar esses dispositivos de intervenção no circuito e ao mesmo tempo garantir a irredutibilidade dos elementos poéticos.

1) artista como agenciador – trata-se de pensar os vários nós da teia que constitui o sistema da arte. E por falar em poema, Basbaum notou que, na língua portuguesa, temos o privilégio de ler essa frase entendendo “nós” tanto como conexões de uma trama quanto como um pronome: “nós, os agentes desse sistema”. A partir desses novos agenciamentos, Basbaum identifica uma estética de deslocamento do evento:

Para o artista como agenciador trata-se de trabalhar a emergência do sentido a partir de uma compreensão sensível, sensorial, de tantos incessantes deslocamentos, trabalhando em prol de sua aceleração, desaceleração, ralentamento, desvios, etc. A percepção torna-se mais aguda ao flagrar “perceptos e afetos” irrompendo em diversas etapas e camadas dos dispositivos de circulação – tem-se uma estética de deslocamento do evento como dispositivo de seu reviramento e construção da intervenção.

2) artista como curador – se em “artista como agenciador” o ritmo proposto por Basbaum era de “deslocamento”, aqui Ricardo propõe a batida da “construção” (um desvio nesse relato: estaria Basbaum pensando no célebre texto de Oiticica “O q Faço é MÚSICA”?), o som de elaboração do evento, no qual o artista interfere tanto na instalação física quanto nas negociações com a instituição, “com a cautela de quem sabe que nesta trama já se produz estruturas de sentido e é preciso saber que tipo de evento se está construindo.” A atuação do artista como curador é a antítese do escritório de produção de exposições e da estrutura de organogramas altamente especializados das instituições. O artista como curador pode, inclusive, contestar o formato “exposição”. E é claro que esse “artista como curador” não precisa ser o “artista” na acepção mais comum do termo. Pode haver um curador que atue como “artista como curador”. O que importa é que a dimensão estética (e erótica, política, etc.) que se confere a um trabalho de arte migre para a construção do evento.

3) artista como crítico – trata-se aqui de usar o discurso como prospecção de novos terrenos, inclusive o da ficção, como ferramenta de expansão topológica. Citando Basbaum,

manifestos, ensaios, textos críticos, proposições, comentários, etc, apontariam sobretudo para uma lucidez de utilização da ferramenta discursiva como tentáculo ativo das propostas de intervenção pretendidas, e aí se inscrevem também os contornos de determinado dispositivo de atuação sendo continuamente delineado e re-delineado. É a partir deste espaço intermediário, em que discurso e visualidade se entrelaçam, que textos podem ser pensados como ‘obra de arte’ – não importa apenas que a frase seja tornada visual, plástica, com escala, textura, material, cor ou relevo, mas sim que sua presença se articule com a consciência da existência de interstícios e frestas, relações a serem agenciadas, dispositivos a construir.

A apresentação de Basbaum indicou que mais do que um representante da “crítica institucional”, a obra de Marcel Broodthaers pode ser absorvida no Brasil como exemplo de “dispositivo de atuação” no circuito da arte: para desnaturalizá-lo (ele pode ser de outra maneira), politizá-lo (lembrando que a ‘polis’ são/somos “nós”) e aproximá-lo da vida.
 

(por Vinícius Spricigo e Paula Braga)

Publicado em 03 de fevereiro de 2006