O Centro Cultural da Cidade de São Paulo
[versão-síntese publicada na seção TENDÊNCIAS/DEBATES do Jornal Folha de São Paulo em 14 de Julho de 2010]
O Centro Cultural São Paulo é um marco do Pós-Modernismo no Brasil. Inaugurado em 1982, sua arquitetura é singular não só por sua riqueza conceitual e projetual, mas principalmente pelo desígnio de se tornar um ambiente democrático e participativo. Os arquitetos e as equipes envolvidas desde sua criação foram além do projetar ideais, ao colocar em operação um dispositivo espaço-temporal acionado e modelado pelo uso e apropriação da multidão. Esta intenção é clara ao dispor de uma rua interna que organiza suas dinâmicas socio-culturais. Ou seja, a rua e sua metáfora ativam o visitante, oferecem novos poderes ao passante, permitem que este se torne um agente nos processos gerados neste ambiente.
O Centro Cultural São Paulo, apesar de sua missão original de proporcionar livre acesso à cultura e à informação, permaneceu ancorado, sem destino, por um bom tempo, a uma ilha formada por dois fluxos urbanos intensos, o da avenida 23 de maio e o da rua Vergueiro -o primeiro originado no século XX e o outro no século XIX. No entanto, hoje navega em seu próprio espaço-tempo, sem perder de vista seu porto de origem e estes fluxos diferenciados: conectado, em sincronia e contextualizado na dinâmica cosmopolita plural, fluída e revolta da cidade que o abriga. Dispõe agora de cartas, mapas, planos, para prosseguir em sua jornada. A continuidade em sua gestão nos últimos 9 anos permitiram que sua estrutura física e cultural fosse revitalizada. Além de estar recebendo cuidados intensos tanto em sua estrutura arquitetônica singular como em sua manutenção, desde 2007, com a instalação de um novo sistema operacional (um novo organograma), o Centro Cultural está sendo gestado por meio de uma nova lógica.
A lógica anterior estava por demais dependente das estruturas culturais de base europeia, ou seja, em descompasso com a contemporaneidade, principalmente diante da inserção potencializada da cultura brasileira em uma cultura globalizada. Divisões estanques, serviços culturais passivos, atividades artísticas segmentadas, orientadas pela concepção de programação pautada em especialidades e pela composição tradicional de um centro cultural, compunham um quadro de engessamento e assim de falta de perspectiva. Uma condição que não favorecia nem motivava a atualização das práticas culturais em curso, tampouco as atividades técnicas inerentes a um centro cultural incomum, uma vez que abriga, além de salas de espetáculo, cinema e espaços expositivos, quatro acervos históricos de importância local e nacional, bem como a terceira maior biblioteca do Brasil.
A nova lógica é operada por meio do compartilhamento de funções/processamentos interdependentes. Para que uma exposição, uma peça, uma audição, um show, uma palestra, uma página na web se realize é necessário o trabalho em parceria. Para tanto foram colocados em prática novos pensamentos hoje fundamentais para uma gestão cultural propositiva em sintonia e em diálogo permanente com o contexto local e global.
Cabe destacar a curadoria. Pesquisa aplicada, a curadoria se consolida nos anos 60 e 70 como gestão de conhecimento em área específica voltada a exposição e mediação, operada politicamente de forma criativa e critica principalmente no âmbito das artes visuais. Fruto de um espírito de tempo que ambiciona a transformação cultural e a inovação, esta curadoria experimental foi revisitada, traduzida, transposta e atualizada para um plano ampliado no Centro Cultural integrando hoje outras áreas de produção cultural. A curadoria ampliada do novo sistema operacional do Centro Cultural inclui além das artes visuais, o teatro, a música, a dança, o audiovisual, bem como programas interdisciplinares. Para atuar neste campo expandido a curadoria conta com a cumplicidade e complementariedade de outras divisões que não são serviçais a ela, como a Ação Cultural e Educativa. Esta opera uma mediação crítico-criativa objetivando potencializar ações culturais dialógicas com o público. Crítica ao senso comum que protagoniza a educação nas mediações culturais, esta nova divisão do Centro Cultural tem, em sua autonomia, procurado constituir uma outra dimensão de relacionamento não só com os públicos existentes bem como procurando alcançar novos usuários para esta mutante plataforma artístico-cultural que é o Centro Cultural. Sua meta primordial é assim potenciar a experiência e o pertencimento de indivíduos e grupos em suas vivências nas dependências do Centro Cultural.
Curadoria e Ação Cultural e Educativa neste sistema operacional estão inevitavelmente relacionadas aos acervos que o Centro Cultural possuí e gerencia desde sua inauguração em 1982. Com o novo sistema operacional, metalinguístico, as práticas culturais foram contextualizadas. Levam em conta não só a singularidade arquitetônica do edifício, com seus distintos espaços e fluxos, como também seus conteúdos, sejam eles do complexo de bibliotecas, formado por cinco coleções -Biblioteca Geral Sérgio Milliet, Biblioteca de Arte e Cultura Volpi, Gibiteca Henfil, Biblioteca Louis Braille e espaço infanto-juvenil- como dos acervos históricos -Coleção de Arte da Cidade, Arquivo Multimeios, Discoteca Oneyda Alvarenga e a Missão de Pesquisas Folclóricas. Os acervos históricos estão hoje sob a responsabilidade de uma nova Divisão que é técnica, reunindo assim profissionais da conservação, restauro, documentação e arquivística. A salvaguarda destas coleções requer técnicas, tecnologias e procedimentos comuns e assim, para otimizar a árdua, minuciosa e exigente tarefa que é a da preservação do patrimônio cultural, esta Divisão conta agora não só com o mais moderno laboratório de conservação e restauro, como com as condições técnicas apropriadas e profissionais qualificados para a execução de tarefas como triagem, acondicionamento, catalogação e tombamento dos materiais a serem colecionados.
Na revisão da missão e objetivos deste Centro Cultural da Cidade de São Paulo -tarefa de base para o re-desenho de seu sistema operacional- o que ficou patente foi sua principal contribuição a esfera pública da arte e da cultura desde sua gênese: a de promover o livre acesso à cultura e a informação, seja por meio de livros, espetáculos, exposições ou pela integração das linguagens artísticas e das práticas culturais. Recuperando e revigorando este espírito democrático, de integração e inclusão, foi lançado em 2007 o programa Livre Acesso, contribuição do Centro Cultural ao desenvolvimento de uma cultura de acessibilidade. Neste sentido Livre Acesso não só investe na infra-estrutura voltada a acessibilidade como também tem um propósito poético de ampliação e potencialização da sensibilidade, da percepção e do conhecimento. Este processo foi iniciado com a mudança da Biblioteca Louis Braille para a praça das bibliotecas na ala sul do edifício o que possibilitou a integração da cegueira neste ambiente.
Em seu campo de ação também estão sendo consideradas as possibilidades de atuação na virtualidade. Na internet, o site www.centrocultural.sp.gov.br , é tão popular como o próprio Centro Cultural. Tanto o edifício como o site possuem uma média aproximada de 2000 visitantes por dia, visitação esta comparável aos importantes equipamentos culturais no mundo. Esta popularidade na virtualidade é fruto de significativo investimento não só em equipamentos e em redes como também na qualificação das equipes que hoje perfazem a Divisão de Informação e Comunicação. O site não só divulga as atividades culturais promovidas pelo Centro Cultural mas é hoje plataforma de extensão de suas ações culturais, operando também como um grande centro de referência, ao possibilitar a pesquisa e a recuperação da memória salvaguardada e produzida pela instituição. Cabe também ressaltar que dentro deste campo de ação, o Centro Cultural foi o primeiro equipamento público da cidade a fornecer acesso gratuito à internet através de uma rede "Wireless".
Como sinal claro que hoje a instituição volta a ter um papel de destaque não só no cenário local, mas global, no final de 2009, o Centro Cultural foi convidado a integrar a Anilla Cultural, um projeto em rede de Internet 2 (internet de alta velocidade e banda larga) que envolverá inicialmente cinco instituições: além do CCSP, o Centro de Cultura Contemporânea de Barcelona, Espanha; o Museu de Antioquia, em Medellín, Colômbia; o Museu de Arte Contemporânea de Santiago do Chile e o Centro Cultural da Espanha de Córdoba, Argentina. O projeto, em andamento, almeja criar uma "nova ágora", um ambiente comum de convivência e de experimentação artístico-cultural promovido e mantido por estas instituições. Este convite também referenda os esforços na internacionalização do Centro Cultural, demonstrando que, assim como São Paulo, esta instituição é cosmopolita, internacional.
Nos últimos quatro anos o Centro Cultural não só recuperou sua auto-estima como deixa evidente que é de fato o Centro Cultural da Cidade de São Paulo. Tão importante como um Centre Pompidou para Paris, ou uma Tate Modern para Londres, esta instituição necessita mais atenção não só do poder público mas de outros parceiros. Seu orçamento duplicou nos últimos quatro anos (2010 dispõe de 10 milhões) e sua Associação de Amigos nunca teve tão ativa e atuante, fatores cruciais no processo de revitalização em curso, mas não é suficiente.
Um passo fundamental seria o de proporcionar mais autonomia a sua gestão, seja pela sua transformação em uma Fundação, seja até mesmo em uma Organização Social. O que acontece apenas uma vez a cada ano na Virada Cultural, com a injeção de 8 milhões de reais para 24 horas de consumo cultural, é cotidiano neste espaço planejado e projetado na segunda metade da década de 1970. É necessário outra prova para demonstrar a atualidade e principalmente a utilidade e pertinência pública desta ágora contemporânea que representa permanentemente e com integridade a cidade de São Paulo?
Martin Grossmann
31 de maio de 2010
[versão-síntese publicada na seção TENDÊNCIAS/DEBATES do Jornal Folha de São Paulo em 14 de Julho de 2010]