O pensamento coletivo, a revista Número Cinco, e uma crítica à crítica
Uma das mais relevantes iniciativas de reflexão sobre o meio artístico brasileiro vem dos auto-intitulados “jovens praticantes da escrita da arte” que escrevem, projetam e publicam a Revista Número, trabalho árduo que é gratuitamente distribuído em São Paulo, Rio, Americana, S. Carlos, Campinas, Ribeirão Preto, Curitiba, Belo Horizonte, Florianópolis e Porto Alegre.
A vontade de retomar a crítica de arte no Brasil através de um espaço aberto a interferências de artistas visuais e, acima de tudo, a noção de pensamento coletivo são grandes méritos desta Revista, fundada por um grupo de estudantes de teoria da arte orientados por Lorenzzo Mammì do Centro Universitário Maria Antônia. Se não cito aqui os nomes individuais de cada membro do grupo é para não dissolver em unidades o que o empreendimento tem de melhor: o foco na construção de uma trama de pensadores, em contraposição à ênfase em indivíduos tão propagada no meio artístico e perniciosa ao livre fluxo de idéias.
Este texto possui um objetivo bem específico: promover a idéia de pensamento coletivo, da troca, da formação de uma trama de pontos bem conectados e que se alimentam mutuamente com o objetivo comum de reestabelecer o pensamento sobre arte no Brasil. Abro aqui uma crítica ao Número Cinco como uma vibração de um desses pontos da trama. O Fórum Permanente, aliás, por sua natureza virtual, é um veículo ideal para manter vibrando as discussões sobre instituições de arte que se iniciam em eventos presenciais, em textos e obras de arte. O leitor fecha uma revista sobre arte mas pode continuar a escrevê-la aqui.
Inicio a troca de idéias com a Número citando um parágrafo do artigo “Notas sobre a Jovem Crítica de Arte” que fala sobre a ação benéfica de uma crítica de arte ruidosa, que atue para além do elogio:
Um elemento disruptor, como este atrito, seria bem-vindo no meio das artes. O marasmo que ali impera é tal que confere magnitude desproporcionada a eventos relativamente insípidos, como um ocorrido recentemente em São Paulo a partir de uma resenha crítica atacando uma mostra mediana e o subsequente debate público reunindo o autor do artigo (curiosamente um pintor) e a curadora da mostra (curiosamente uma jornalista-crítica de arte).
A dificuldade em nomear eventos, instituições, nomes de artistas e curadores, substituindo-os por termos mais genéricos como “uma resenha” de “um autor” sobre “uma mostra” não é característica apenas deste texto. Muitas vezes no próprio Fórum Permanente deparamos com essa dificuldade, seja no discurso dos palestrantes seja na redação de textos para o site. Mas se acima defendi o anominato em prol do coletivo, quero agora criticar o uso evasivo de substantivos para substituir um nome próprio. Aqui a categoria (autor, mostra) não determina um coletivo e o anonimato não é portanto desejável. Precisamos dos nomes nessa hora pois é função da crítica disseminar a informação precisa, que levará a uma ação. Por que não citamos os nomes? Qual é a censura que impõe esse código do silêncio? Que há uma censura, com certeza há, pois do contrário não nos depararíamos com essa dificuldade. A censura vem do próprio meio: as oportunidades de trabalho são tão poucas que não queremos ofender ou perder a estima de alguém que no futuro possa ser um parceiro.
Há outro trecho da revista Número Cinco que quero citar como exemplo da dificuldade de equilibrar o coletivo e o individual. O artigo “A Ordem é Democratizar” baseia suas críticas à política cultural do governo em uma defesa da classe dos artistas e afins. Um protecionismo de classe, e não um pensamento coletivo. Segundo o texto, o acesso à arte contemporânea não pode ficar restrito ao fornecimento de monitorias na Bienal de São Paulo para os segmentos desfavorecidos da sociedade (os pobres, os analfabetos, os miseráveis), mas precisa estender-se ao fornecimento de cursos de arte, bibliotecas bem equipadas, bons professores no ensino superior, bolsas de especialização, para um hipotético visitante mirim da Bienal, desfavorecido socialmente, que deseje tornar-se um artista ou pesquisador da arte brasileira. A vida não vai nada bem para os outros meninos que estiveram naquela monitoria e não querem ser artistas ou pesquisadores da arte, mas o texto não cita as mazelas deste outro grupo, que diga-se de passagem, ao menos teve um bom programa para fazer em um dia de verão em 2004. Ora, o exemplo do menino que quer ser artista após visitar a Bienal apenas corrobora a idéia de que a arte é apenas para os iniciados, os membros do grupo de artistas e pesquisadores da arte brasileira, que é justamente o que o ministro Gilberto Gil afirmou e condenou ao propor a democratização do acesso à arte contemporânea.
E já que estamos falando da idéia de um coletivo pensante, vale lembrar que Gil é, aliás, defensor obstinado de uma mudança radical no sistema de autoria: a licença “creative commons”, que substitui o velho “todos os direitos reservados” pelo novo conceito de “alguns direitos reservados”. O creative commons oficializa o óbvio: nenhuma autoria é totalmente individual, qualquer invenção é fruto de uma trama de antecessores e simultaneadores e portanto precisa ser colocada de volta com maior generosidade nessa rede de retro-alimentação.
A crítica é um tipo de retro-alimentação que, se feita com o espírito de parceria, reforçará a trama da invenção. É com críticas e muita gente pensando e criando no coletivo que se tece a trama da terra que treme.
Maria Hirszman