Um acordo de cavalheiros em vivo contato
desenho de Nicolás Robbio censurado no jornal 28b [para ver maior clique aqui]
O posicionamento da Fundação Bienal de São Paulo em relação à jovem que continuava presa mesmo após o encerramento da 28ª Bienal de São Paulo é muito significativo tendo em vista todas as discussões que essa edição do evento pretendeu levantar. Isentando-se de culpa, o comunicado à imprensa[1] emitido no dia 11 de dezembro, contudo, não é uma surpresa, tendo em vista o histórico de seu atual presidente, Manoel Francisco Pires da Costa.
De se estranhar, entretanto, é o posicionamento do curador do evento, Ivo Mesquita, para quem “uma coisa é grafiteiro, pichação; outra coisa é uma tática terrorista de arrastão, 40 a 50 pessoas, com um histórico nada bom, que invadem lugares como a Belas Artes e a Choque Cultural e destroem obras de arte”, como afirmou à Folha de S. Paulo, segundo matéria publicada em 14/12/2008.
A questão é que, nesse momento, saiu-se do campo da estética para entrar no campo de ética. Nesse sentido, tanto curadoria quanto presidência estão afinados num mesmo posicionamento, lembrando o “acordo de cavalheiros” revelado por Mesquita na carta[2] enviada ao presidente, quando da ameaça de corte ao evento, abordada em 26/12/2008 na matéria “Pedido de corte ameaça 28ª Bienal”, na Folha de S. Paulo.
Esse “acordo de cavalheiros” merece ser aprofundado. É notório que Mesquita foi o único curador a aceitar realizar esta Bienal após uma fracassada tentativa de seleção por projetos. Ele mesmo desistiu de entregar o seu, na última hora, e apenas Márcio Doctors chegou a apresentar um projeto, também desistindo quando soube ser o único. Frente à iminência de não ter um curador para a mostra, Pires da Costa pediu que Doctors e Mesquita fizessem um projeto conjunto, que acabou sendo, ao final, levado adiante apenas por Mesquita.
A expectativa, então, era que Mesquita, salvando o presidente do desastre, tivesse total liberdade para levar adiante seu projeto crítico, que não só abordaria a crise da Fundação Bienal como uma eventual crise do modelo da Bienal. Mesmo com um prazo curto, de menos de um ano, e a certeza de verbas limitadas, que não se revelaram tão limitadas assim, afinal R$ 8 milhões não é um valor baixo, o curador colocaria a Bienal no divã.
Contudo, desde então, ao mesmo tempo em que Pires da Costa ganhava legitimidade, o projeto de crítica institucional foi paulatinamente se esvaziando. Basicamente, ele se restringiu aos debates pouco freqüentados e, mesmo com uma seleção de convidados realmente diversificada, pareciam ser tão genéricos e impressionistas, com raras exceções, que eram absolutamente superficiais.
Assim, essa situação esquizofrênica foi se expandindo cada vez mais: a bienal da crítica institucional separou a reflexão da produção artística, como se a crítica não pudesse ser realizada pelos artistas, ou pior, deveria ser evitada. Alguém chegou a afirmar que o evento passou por um processo de “deshanshaackeização”, em referência ao alemão Hans Haacke, reconhecido por suas obras que fazem crítica institucional.
desenho de Nicolás Robbio censurado no jornal 28b [para ver maior clique aqui]
Essa contradição tornou-se mais patente ainda com a abertura da mostra, pois ela também foi totalmente omissa em relação à reflexão. O que a exposição tentou trazer de inovador foi uma experiência formal do modelo expositivo. Enquanto projeto experimental não deixa de ser válido, mas no contexto do projeto de “em vivo contato” foi absolutamente frustrante, além de conveniente para a presidência.
Nesse processo, foi um tanto obscura a saída do co-curador Thomas Mulcaire, no meio do processo de organização da Bienal. A amigos, Mulcaire tem dito que sua saída ocorreu por justamente tentar tornar a crítica institucional mais aparente, por exemplo tornando públicas todas as contas do evento. Teria sido de fato relevante saber, por exemplo, quanto se gastou com cada artista, com o projeto educativo, enfim, numa Bienal, o quanto se gasta com arte e o quanto com publicidade, por exemplo.
A minha impressão é que, mesmo que Mesquita procure sempre se mostrar independente da presidência, afirmando que a curadoria é “terceirizada”, portanto, livre, é muito difícil se desvincular essas duas pontas. Nesse sentido creio ser sintomático que, quando a carta de Mesquita contra o pedido de 40% de corte feito por Pires da Costa tornou-se pública _carta essa dura e reveladora da ação do presidente, o curador tenha voltado atrás em seu discurso, culpando o Conselho e lembrando que há um problema crônico de fluxo de caixa nas vésperas de toda Bienal, outro momento conveniente para a presidência.
No debate com os jovens críticos da revista Número, no Centro Universitário Mariantonia, no último dia 12, Mesquita revelou que chegou a desestimular três artistas com projetos mais críticos sobre a Fundação, dois deles pois o próprio curador estava envolvido. A ausência de projetos de risco na Bienal, tornou-se assim, uma marca desse evento, como afirmou a artista Carla Zaccagnini, no último debate da série “A Bienal de São Paulo e o meio artístico brasileiro: memória e projeção”.
E, aí, talvez, esteja o dilema central dessa Bienal: é possível realizar a crítica institucional dentro da instituição? Pelo que se observou ao longo da realização da mostra, a resposta, no caso da Fundação Bienal, é obviamente não. Artista cujo projeto seria uma inserção em todas as edições do jornal 28b, o argentino Nicolas Róbbio teve alguns desenhos censurados, justamente aqueles mais críticos à própria Fundação e ao projeto da curadoria, desenhos esses cedidos ao Fórum Permanente como se pode ver ao longo desse texto.
desenho de Nicolás Robbio censurado no jornal 28b [para ver maior clique aqui]
O jornal 28b, aliás, comprova outra das incongruências de “em vivo contato”: se por um lado ele cria um novo circuito para a Bienal, ao ser distribuído gratuitamente pela cidade, por outro, seu conteúdo é tão conservador que chega a ser estarrecedor. A começar pela existência de um editorial: Por que é preciso uma página tão hierárquica, com a voz de um dono da verdade como um editor? Mas não é só isso: Por que os artigos são tão convencionais rebaixando o conteúdo, evitando a reflexão? Por que evitar as polêmicas da mostra, como se elas não existissem, dando a impressão de um “house organ” publicitário? Por que buscar agradar o leitor a todo custo, no modelo “o povo fala” usado nos tablóides sensacionalistas?
Enfim, essa falta de ousadia esteve não só na publicação 28b, mas por toda a 28ª Bienal, culminando com a sintonizada opinião em relação à pichação. Difícil não relacionar essa harmonia ao cumprimento do acordo de cavalheiros, abandonando-se de forma deliberada a crise circunstancial para abordar algo mais geral. O problema é que, ao se evitar o visível e real desmando do atual presidente criou-se uma situação falsa, “a crise das bienais”, escondendo-se embaixo do tapete o trauma recente. Sem ele, no entanto, tudo o mais ficou sem sentido.
Esse processo de encobrimento ainda segue no prometido relatório final da Bienal, que será secreto! Acabada a Bienal, depois de tantos encontros e debates, Ivo Mesquita comprometeu-se a entregar um texto à Fundação reunindo os principais tópicos abordados no evento com suas conclusões. Entretanto, aquilo que, então, seria o posicionamento do curador sobre todo o debate ficará restrito à diretoria da Fundação, cabendo a ela a decisão de torná-lo ou não público. É compreensível que existam relatórios internos que não precisam ser públicos. Contudo, no caso da 28ª Bienal, esse documento seria como o relatório de uma Comissão Parlamentar de Inquérito e relatórios de CPI são necessariamente públicos. Para a história da instituição urge que esse texto se torne público, mas parece que o compromisso da curadoria não está com a instituição, mas sim com sua direção.
[1] Comunicado à imprensa (11/12/2008)
A Fundação Bienal de São Paulo vem esclarecer publicamente que não possui qualquer ingerência sobre a liberdade da jovem Caroline Pivetta da Mota, presa em flagrante no último dia 27 de outubro, após ter participado, juntamente com um grupo de cerca de 40 jovens, de pichação e depredação do Pavilhão Ciccillo Matarazzo.
Diferentemente do que vem sendo entendido pela imprensa, não cabe à Fundação “retirar queixa” ou pedir “relaxamento da prisão” da jovem, já que a mesma foi detida no ato do delito (flagrante). A decisão pela sua permanência na prisão, ou mesmo a intensidade da pena aplicada ao caso, é de exclusividade da Justiça.
A única responsabilidade da Fundação, neste caso, foi registrar boletim de ocorrência, uma vez que é sua obrigação zelar pela integridade física do Pavilhão Ciccillo Matarazzo, edifício tombado pelo patrimônio público e cedido em regime de concessão de uso.
Lamentamos profundamente o ocorrido.
Fundação Bienal de São Paulo
[2] Prezado Manoel,
Depois de muito refletir, porque esse é o mote da 28ª Bienal, gostaria de deixar registrado algumas das minhas preocupações sobre o seu pedido de corte de 40% do orçamento do projeto pouco mais de quarenta dias da abertura. Em primeiro lugar, devo registrar a minha surpresa por esta proposta. Entretanto, antes de trazer as minhas considerações gostaria de observar o seguinte:
I. Gostaria de lembrar que desde o inicio dos trabalhos da 28ª Bienal o projeto original já sofreu cortes significativos: o primeiro foi o abandono da idéia de remover os caixilhos da entrada do térreo do pavilhão por conta do custo de R$ 2.100.000,00. Depois de havermos contornado problemas jurídicos, legislativos e de cronograma de tal empreitada, gostaria de observar que o argumento de que não teríamos tempo para tal operação é totalmente desqualificado pelo argumento de qual é a função da Bienal de São Paulo, fazer a Bienal ou alugar o prédio para a Fashion Week?
II. Cortamos a edição do jornal de 150.000 para 50.000, e de 12 números para 9. O que diminui, e muito, o alcance pretendido de circulação do projeto da 28ª Bienal na cidade de São Paulo.
III. Em terceiro lugar, também fizemos cortes de alguns projetos especiais muito interessantes e importantes como o de música do Abel Rocha e o de poesia do Horácio Costa. Ambas manifestações importantes para a recuperação da música e da poesia na história das Bienais de São Paulo, assim como para o desenvolvimento do conceito da Praça no térreo. Creio que com isso pode-se falar que do projeto original aprovado em dezembro de 2007, já cortamos quase R$ 5.000.000,00. Isso mostra que a curadoria tem sido extremamente razoável e cooperativa com a realidade da Instituição.
Então vamos as minhas considerações quanto aos cortes sugeridos
IV. Cortar o educativo é grave. Esta é uma instituição pública e que presta um serviço para a comunidade. Além do que, há no corpo da 28ª Bienal projetos que estão sendo trabalhados especificamente para um programa educativo. O corte do mesmo seria extremamente danoso para a imagem institucional da Fundação porque existem recursos alocados para a Bienal que contemplam especificamente o seu plano educativo, e se eu bem me recordo eles já até foram usados sob essa rubrica (Secretaria Municipal de Cultura e Votorantim). Acho que podemos reduzir algumas coisas, mas não podemos abrir mão deste setor. Se algum corte for feito – por exemplo, atendimento às escolas publicas – não podemos deixar de desenvolver trabalhos já em andamento como a formação de monitores específicos para o acompanhamento dos visitantes junto aos trabalhos dos artistas do 3º andar. Já que a mostra se propõe interativa com o publico é preciso ter esse acompanhamento didático. O trabalho de formação de professores é outra peça fundamental, pois a Bienal de São Paulo é conhecida e respeitada pela sua qualidade como espaço dedicado ao conhecimento e difusão da arte contemporânea. Assim sendo, cada Bienal de São Paulo é uma ocasião muito especial para a formação desses profissionais que são propagadores da experiência oferecida pela Bienal. Também devo dizer que em vista da importância do trabalho também autorizei a continuação do projeto Centro-Periferia, iniciado em 2006 e que foi considerado uma das experiências mais bem sucedidas em arte educação de que se tem registro.
V. Arquitetura. É impensável considerar cortes 40 dias antes da abertura. Não ter o auditório é simplesmente não estar preparado para o principal processo instalado pela 28ª Bienal, que é o espaço de reflexão por meio das conferências e debates. Também, com relação ao espaço da Praça e dos dispositivos teatrais necessários para o bom funcionamento dela, estava claro desde o principio de que esse seria um dos grandes desafios do projeto e um componente fundamental para a boa compreensão dele. Quanto ao espaço expositivo do 3º andar, desde o começo sabíamos da complexidade e da qualidade de acabamento que ele deveria apresentar no final. Sem esse dispositivo de exposição bem apresentado e com o desaparecimento de áreas importantes dentro do pavilhão, a 28ª ganharia uma aparência extremamente precária e pouco profissional. Eliminar qualquer um desses elementos é simplesmente esvaziar totalmente o pavilhão no mal sentido, portanto seria contrário à noção de vazio proposta pelo projeto da 28ª Bienal.
VI. Com relação aos cortes indicados para as traduções (site, jornal, tradução simultânea das conferências), devo observar que eles são extremamente temerários, porque mostrariam que a Fundação Bienal de São Paulo, mesmo depois de 58 anos de existência, ainda não se tornou internacional e bilíngüe. Em sério, não é possível. Não existe catálogo ou qualquer serviço prestado por uma bienal internacional, que não seja bilíngüe. Será um absurdo trazer profissionais altamente qualificados e conhecidos para falarem ao publico brasileiro e não termos tradução simultânea que possibilite o acesso as idéias deles. Vale lembrar que a Bienal de São Paulo tem sido, sem dúvida alguma, um dos maiores difusores da imagem do Brasil no exterior.
VII. Cortar partes importantes da assessoria de imprensa também não me parece ser uma boa estratégia, pois afinal é ela quem assegura a qualidade da informação que a Bienal produz sobre si mesma e mantém um canal aberto com a própria imprensa.
VIII. Cortar a documentação fotográfica da 28ª Bienal é lamentável já que o objetivo da mostra é justamente oferecer um padrão de documentação que contribua para o aprimoramento do Arquivo Histórico Wanda Svevo, e suas possibilidades de prestar serviços cada vez mais completos para a comunidade de artistas e pesquisadores.
IX. Quanto ao corte proposto de Ivaldo Bertazzo, Fischerspooner, e Los Super Elegantes, também me parece uma péssima estratégia, afinal eles já foram estrondosamente anunciados porque são figuras mediáticas. O prejuízo pode ser incalculável para a imagem e a reputação da Fundação Bienal de São Paulo.
Então, como você pode ver, acho que temos um problema a ser resolvido e não é a curadoria quem o pode fazer. Nós estamos batalhando pela integridade do projeto.
Eu gostaria de lembrar uma coisa. Tenho entendido que quando você me convidou para almoçar com a Eleonora em outubro do ano passado e me pediu para voltar a participar do processo de seleção do curador da 28ª Bienal - convite que eu já havia recusado - nós selamos um acordo de cavalheiros. Naquele momento você precisava da minha competência e confiabilidade, com respeito nacional e internacional, para ajudar a recuperar a imagem institucional e a credibilidade da Fundação Bienal de São Paulo. Acho que nesse sentido, eu tenho sido de enorme valia, pois já está comprovado que em diversas vezes eu administrei situações delicadas que sequer chegaram à diretoria, e nem à imprensa, o que revela o meu grau de compromisso com a nossa colaboração. Estou seguro de que já está claro que o projeto curatorial, e a minha condução dele, reverteram a imagem negativa que tinha a Bienal um ano atrás. Também acredito que criamos uma boa expectativa que agora tem de ser cumprida, revelando a extensão e credibilidade do projeto. Nesse sentido já estão agendadas as vindas dos patronos da Tate Gallery, do Museu de Arte Moderna de São Francisco, do Fórum Internacional de Empresários, do grupo do Bard College, além de inúmeros críticos, curadores e jornalistas internacionais que já confirmaram presença. Eu entendo, portanto, que agora é chegada a hora da presidência comparecer e fazer a parte dela nesse acordo. Não podemos abrir a Bienal com ela parecendo desfalcado e mirrada, porque isto seria extremamente danoso para a Fundação Bienal, para a diretoria, e para a curadoria. A minha parte, que era desenvolver o projeto e implantá-lo, já está em processo final e só falta concluí-la. Todos os compromissos já estão assumidos e há um grande numero de profissionais que já estão trabalhando. Não há nenhum processo se iniciando agora e que possa ser cortado. Portanto é necessário que a Fundação encontre os recursos para que o projeto seja realizado ao agrado de todos e que a ela cumpra o seu papel de viabilizar o projeto contratado.
Cordialmente,
Ivo Mesquita