texto curatorial: Margem

Os rios têm, historicamente, funções múltiplas e vitais na formação e organização das cidades, sejam elas econômicas e culturais (fornecimento de água, pesca, cultura ribeirinha), de lazer e amenidades (represas, clubes náuticos), ou infra-estruturais (escoamento de detritos, meio de transporte). Vistos na escala do país – e, mais ainda, do continente –, os rios e suas bacias compõem um elo territorial que integra as cidades em um sistema unitário: uma rede feita de pontos estáveis e de fluxos. E, simbolicamente, trazem consigo a discussão acerca da sustentabilidade de modo amplo, tanto em relação à água como recurso natural, quanto em relação ao transporte fluvial como um instrumento de integração e soberania nacional, aludindo a um modelo de desenvolvimento econômico e espacial abortado, mas que ainda pulsa.

No Brasil, como em quase todas as regiões do Novo Mundo que se “civilizaram” dentro de um regime colonial, as cidades se desenvolveram numa batalha contra o meio natural. Daí que a maioria delas tenha crescido de costas para os seus rios, tratados simbolicamente como os fundos de quintal (áreas técnicas e de serviço) dessas imensas casas, que são as cidades. Relação que, evidentemente, se agravou quando estas passaram pelo processo de modernização industrial, na segunda metade do século 20. Paulatinamente, os rios foram sendo cada vez mais recalcados, e desaparecendo da paisagem e da vida cotidiana das cidades, mesmo daquelas que dependem quase que exclusivamente deles, como Manaus. Os rios urbanos são, nesse sentido, típicos “não-lugares”. Isto é, locais margeados por pistas de tráfego expresso e/ou espaços residuais, estéreis e impessoais. Mas, por isso mesmo, suas orlas são ainda enormes reservatórios de urbanidade no coração dessas mesmas cidades, sobretudo se tomarmos como referência as orlas marítimas. Haveria exemplo mais emblemático de um espaço público vital, no Brasil, do que o calçadão de Copacabana? É exatamente esse potencial que parece estar sendo percebido e valorizado hoje, de modo ambíguo, em algumas cidades do país. Pois em capitais como Rio Branco, Belém, Recife e Porto Alegre, por exemplo, nota-se uma corrida recente do poder público e do mercado imobiliário para essas orlas fluviais, projetando e construindo nelas centros turísticos, comerciais, de negócios, ou condomínios de luxo. Há, portanto, sinais contraditórios de uma recente revisão desse legado histórico em um contexto dito pós-industrial e globalizado, embora ainda na periferia do capitalismo. Em que termos essa revisão crítica se dará? Superando o legado colonial, ou aprofundando o seu caráter predatório e exclusivista?

Se a Amazônia promete ser a vanguarda do mundo, como diz o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, ela é também, por outro lado, o eterno emblema de um lugar À margem da História, como escreveu Euclides da Cunha. Ao enfocar os rios urbanos, o projeto Margem traz à tona tanto o Brasil urbano-industrial, de córregos canalizados, vias expressas e linhas férreas, quanto um Brasil anfíbio, de ribanceiras e palafitas, de territórios moventes feitos de secas e cheias, de florestas, mangues e charcos, e de sertões. Em outros termos: a história e suas margens, dobrados através da constante geográfica.

Grande parte da arte contemporânea mundial, em contexto urbano, tem tematizado situações de conflito e segregação, sejam elas sociais (guetos, áreas suburbanas), espaciais (zonas de fronteira, de guerras e guerrilhas), identitárias (raciais, sexuais, religiosas), memorialísticas (como referência à opressão do passado, como o holocausto ou o Muro de Berlim), ou conceituais (denunciando a privatização da esfera pública, aparatos de confinamento e controle, ou fazendo crítica institucional). Por essa linha, são, em geral, ações pautadas por um enfoque eminentemente culturalista, que supõem uma sociedade de pleno direito bem constituída, uma esfera pública consolidada, uma história sedimentada, uma memória que se reatualiza no presente, e cidades que trazem consigo uma longa tradição de monumentos artísticos. Algo, portanto, muito distante da nossa realidade, que parece estar em permanente formação, ao mesmo tempo que já fadada à ruína precoce. Para as cidades brasileiras vale ainda, em grande medida, a definição dada por Claude Lévi-Strauss nos anos 50, de que elas “passam do viço à decrepitude sem parar na idade avançada”, sem atingir a maturidade, pois “são construídas para se renovarem com a mesma rapidez com que foram erguidas, quer dizer, mal”.

Em termos de arte, é evidente que boa parte do ímpeto construtivo das nossas vanguardas concretas procuraram responder a tal questão, reagindo a essa carência brasileira – seu defeito de formação congênito – de modo a opor-lhe uma resistência formal e fenomenológica, através do próprio “corpo” da obra. Da mesma forma, a virada contracultural dos anos 60 representou uma reversão daquela aspiração construtiva, incorporando – na mão contrária – a contingência, a precariedade e a improvisação como dados de formação inalienáveis, e portanto armas de violência estética sob uma ótica terceiro-mundista. Do paradigma de Brasília, protegido e civilizado, passávamos ao do universo informe das favelas, em cidades que cresciam de modo endêmico e precário.

Explodindo o seu suporte, ganhando o espaço circundante, construindo ambientes, abrindo-se à participação do espectador, e agindo diretamente no mundo da vida, a arte contemporânea conquistou um território antes restrito à arquitetura e ao urbanismo – tanto em temática quanto em escala –, misturando-se a ele. Liberada, porém, de qualquer compromisso restaurador ou edificante, e podendo assumir, ao contrário, um ângulo essencialmente crítico e negativo. Assim, os rios e suas margens não são, para esse projeto, metáforas nostálgicas de uma urbanidade perdida. Mas, talvez, chaves de uma urbanidade recalcada e latente no coração decrépito, e ainda mal formado, das cidades brasileiras. Chaves que hoje, em novo registro, aparecem como centrais no conflituoso processo de reconfiguração urbana que se dará, nestas cidades, em um futuro próximo.


Guilherme Wisnik
curador