Marcel, 30 - Conferência 5

28/01/2006 Relato da Conferência: “Correspondências para além do silêncio” - Dorothea Zwirner

Dorothea Zwirner abriu os trabalhos da tarde. Antes de começar sua comunicação declarou-se perdida com tantas traduções, fato que muito se refere a Broodthaers. Ele era belga [a Bélgica é um país bilíngüe] e usava em seus trabalhos legendas e rótulos em três línguas. Sentir-se perdido nas traduções é um sentimento muito apropriado para se entender o artista.

Marcel Broodthaers: Correspondência além do Silêncio.

Corresponder é ser equivalente. Correspondência em um sentido mais concreto significa troca de cartas, o que pressupõe a existência de uma contraparte, interação, negócio. Arte sempre lidou com correspondência, especialmente sobre a correspondência entre imagem e sua reprodução, entre uma palavra e seu sentido, entre ficção e realidade, entre arte e vida. Desde o romantismo a arte tem procurado responder a esta “paradoxal presença da ausência”. Duas abordagens podem ser percebidas: 1) o apelo romântico à completude e unidade criou a busca pela autonomia, autenticidade e aura. 2) a própria reflexão romântica e a ironia trouxeram a consciência pós-moderna da ênfase no múltiplo, no Outro. Ambas posições se movem em direção a um beco sem saída. Mencionam-se aqui O Quadrado Negro de Malevitch e Fonte de Duchamp, abstração e objeto.

Levando em conta estas posições opostas, a questão da representação pode ser estendida à questão das possibilidades da arte. Com Duchamp, um terceiro elemento aparece: o arcabouço da arte, seja espaço, tempo, contexto, instituição ou o ambiente total da arte, ou seja, fatores externos à arte mas com influência decisiva no reconhecimento, valor e sentido de uma obra de arte. Diante deste quadro, e além do silêncio de Duchamp, ecoam as palavras de Marcel Broodthaers:

Ficção torna possível capturar a realidade, mais do que isso, torna possível capturar o que a realidade esconde.

Além dos laços entre ficção e realidade, Broodthaers menciona as estruturas ocultas. Assim como Foucault investiga as instituições disciplinares como manicômios, hospitais e as prisões, Broodthaers estuda o museu enquanto instituição. Tornou-se assim um dos expoentes da crítica institucional, presente desde o modernismo a partir de Duchamp.

 

O primeiro tópico da palestra trata da definição de Crítica Institucional O surgimento do modernismo coincide com a criação dos museus. Segundo Foucault, os quadros de Monet inauguram uma pintura referente a si mesma e são as primeiras pinturas de museus na arte européia. Assim é dentro da instituição museu que a arte moderna nasce e floresce. Por outro lado, o museu, ao garantir sentido para uma arte nova e moderna, acaba se tornando uma nova autoridade com o poder de definir o que é arte e o que não é. Isto leva ao conceito paradoxal de arte autônoma que apenas floresce sob a proteção do museu. Fonte (1917) de Duchamp, um objeto comum, sem um autor definido — um pseudônimo — foi a primeira fagulha da crítica institucional, pois funcionou como arte apenas no contexto de uma exibição.

Instituição aqui, segundo Peter Burger, não se refere apenas a museus, mas a toda instituição da arte. Ou seja, não apenas ao aparato de distribuição e produção, mas à noção corrente de arte de uma época dada, que, juntos, definem a recepção do trabalho. A vanguarda contesta tanto o aparato de divulgação ao qual a arte deve se submeter, quanto a pretensa autonomia da arte na sociedade.

Com a vanguarda a arte entrou no estágio de auto-crítica. Crítica pressupõe um distanciamento, enquanto que o conceito de autocrítica permite o duplo ponto de vista assinalado anteriormente e coloca a Fonte de Duchamp como o elemento inaugural.

A questão seria então, porque criticar?

Peter Burger responde dizendo que a estética pura reforça uma autonomia que significa apenas uma arte sem impacto na sociedade pois se afastou dos laços com a vida. A vanguarda protesta tentando trazer a arte de volta à vida prática. Se o preço a ser pago pela arte por sua liberdade e autonomia for a própria vida, então museus serão cemitérios e os curadores os coveiros.

Dependendo do grau de sucesso da vanguarda na sua missão de trazer a arte de volta à vida prática, fala-se sobre o “fracasso da vanguarda” ou o “projeto incompleto da Modernidade”. Peter Burger publicou sua obra acerca do que julgou ‘fracasso da vanguarda’ em 1974, na época em que artistas como Broodthaers, Daniel Buren, Hans Haacke, Michel Asher estavam realizando as respectivas críticas da instituição de arte de novas e diferentes maneiras. Em que estas práticas, denominadas por Andrea Fraser de Crítica Institucional, diferenciavam-se das vanguardas?

Um fator importante seria que, em 1917, as vanguardas tinham um teor “anti-burguês” e criticavam a institucionalização da arte. Nos anos 1960 e 70, os ecos de 1968 articularam movimentos contra o poder das instituições, e especialmente no caso, contra a institucionalização das vanguardas. Muito dessas críticas acabaram no vazio, sem escapar dos limites da indústria cultural e da ‘cultura de celebridade’.

 

O segundo tópico trata da concepção de museu de Broodthaers. Seu museu surgiu de uma situação específica e não de um conceito fechado. Seu apartamento onde instalou seu Museu de Arte Moderna foi usado como um cenário (setting) para discussão dos debates acalorados de 1968, acerca da questão arte e sociedade, da distância entre produtor e receptor e o papel associado do museu. Este espaço de discussão fôra concebido como um museu fictício, com todos os rituais de convites, vernissage etc. Assim como Duchamp declarou sobre a Fonte: “isto é uma obra de arte”, Broodthaers declarou: “isto é um museu”.

Este museu ficcional desenvolveu-se com uma dinâmica própria. Na Documenta de 1972 e em Dusseldorf, Broodthaers apresentou o Museu de Arte Moderna. Departamento das Águias, Secção de Figuras, descritos em palestras anteriores. O que ele realmente torna evidente nestes trabalhos é a extravagância da classificação e dos sistemas científicos, tal como Foucault demonstra em “As palavras e a coisas” ao se referir a uma Enciclopédia Chinesa descrita por Jorge Luis Borges.

A inscrição em inglês, francês e alemão, “Isto não é uma obra e arte” — paródia de “Isto não é um cachimbo” de Magritte — que acompanhou as peças das exposições citadas, mostra o efeito sinérgico do poder imperial da águia com a autoridade acadêmica da instituição. Broodthaers, segundo declarou, procurou ilustrar o método usado por Duchamp e Magritte.

Correspondência além do silêncio trata das conexões que Broodthares faz com suas referências, uma rede que atravessa outras estruturas verticais de correspondência entre ficção e realidade, arte e vida. No entanto, correspondência não se refere apenas à sua rede imaginária na qual poetas do século XIX, Poe, Mallarmé, Lewis Caroll, Baudelaire, conectam-se com artistas do século XX como Duchamp e Magritte. Também trata do seu uso da troca de cartas, nas quais se situa com autoridade institucional e assim encontra uma forma de expressão na intersecção entre arte, crítica e efeitos cômicos. O seu lado bem humorado tem sido esquecido em seu trabalho em detrimento de um lado político.

Consciente do perigo da historização e musealização da sua própria ficção, decidiu fechar seu museu na Documenta V. Seu museu ficcional não é mera crítica institucional, mas dispõe de sensibilidade artística nas qualidades específicas do trabalho. A linguagem tem importante papel. Não se pode esquecer de Pense-Bête, sua obra inaugural nas artes plásticas a qual marcou seu silêncio como poeta. Sua crítica da estrutura institucional baseia-se em nossas ligações com as estruturas da linguagem.

 

O terceiro tópico da palestra de Zwirner trata da correspondência com alguns artistas seus contemporâneos: Beuys e George Brecht e da posição especial de Broodthaers nesta rede. Na língua alemã, posicionar-se, tomar uma posição,(eine Position besetzen) se associa a sentar-se (sitzen). Se alguém se “senta em uma posição” toma posse dela. Assim chegamos em cadeiras.

[slides de trabalhos com cadeiras de Broodthaers, Beuys e Brecht, as correspondências entre os artistas partem das posições das respectivas cadeiras e da comparação entre elas]

As relações tensas entre Beuys e Broodthaers têm sido mais estudadas. Portanto a ênfase aqui recai na relação com George Brecht, nascido em New York em 1926, menos conhecido do que Beuys devido a um caráter mais reservado. Trabalhou como químico até 1965, quando se mudou para a Europa. Estudou com John Cage em New York. Depois de passar pela França e Inglaterra, passou a residir na Alemanha a partir de 1970 e atualmente reside em Colônia.

Ele e Broodthaers se encontraram umas duas vezes apenas, no entanto há enormes afinidades intelectuais e estéticas entre eles. Ambos compartilhavam um foco conceitual de trabalho que era abertamente heterogêneo e conseguia recriar a atmosfera dos mercados de pulgas e museus de história natural por meio do uso de materiais encontrados e objetos da vida diária. Brecht usava readymade em seus arranjos, objetos que se dirigiam à participação do espectador e desencadeavam um acontecimento (Event) com o uso de instruções e sugestões dadas em poucas linhas para serem lidas como partituras ou procedimentos experimentais científicos. Seu conceito de acontecimento-partitura (Event-score) pode ser entendido como “a extensão do readymade no reino da ação”. Segundo Brecht não se tratava de assemblage, mas de arranjo. Havia preocupação com o elemento tempo e com o espectador. O acaso sempre joga um papel importante em tais tipos misteriosos de correspondência além do silêncio. Brecht publicou um livro sobre o acaso: Chance Imagery, em 1957. Dez anos mais tarde acrescentou um adendo ao seu texto afirmando “que percebeu as mais importantes implicações do acaso no trabalho de John Cage”.

Cage descobre na sala à prova de som da Universidade de Harvard que o silêncio absoluto não existe, que sempre se escuta algum som [no caso som do coração e do fluxo sanguíneo]. E mesmo o lendário jogo de xadrez silencioso de Duchamp não criaria o silêncio absoluto. A conexão entre o “som encontrado” de Cage e o readymade de Duchamp é tão importante para Brecht, quanto a questão da origem da imagem de Magritte e o discurso contextual de Duchamp são para Broodthaers.

[imagens de obras dos dois artistas envolvendo a palavra silêncio, incluindo stills do filme Speaker’s Corner (1972) de Broodthaers]

Em ambos encontramos pedidos de silêncio meio a outras instruções e sugestões. No filme citado de Broodthaers, o paradoxo de pedir silêncio em um parque famoso pela fala livre (Hyde Park, Londres) funcionou como “meio de capturar o silêncio que precede a formulação e moldagem de uma nova idéia”. Beuys, por sua vez, criticou o silêncio de Duchamp com uma ação gravada na TV alemã: O silêncio de Marcel Duchamp é super estimado (1964), na qual solicitava uma nova definição de arte, em que todo ser humano seria um artista. Percebe-se aqui a diferença entre os três artistas e a distância entre Beuys e os demais. Beuys afirmou o conceito (pré)moderno de aura com sua fundação antropológica da arte. Já Broodthaers e Brecht anteciparam a concepção (pós)moderna do relativo, randômico, ambíguo. As diferentes relações com Duchamp mostram uma encruzilhada no caminho em que a demanda moderna pelo absoluto separa-se da consciência pós-moderna do contingente.

Comparando a auto-imagem artística dos três artistas, temos que Beuys demandava o papel de xamã para si, seria aquele que cura as feridas sociais, o que de alguma maneira reforça o culto do gênio do século XIX. Broodthaers usou incontáveis assinaturas afirmando a tradição narcisista do artistas. Ele dirigia seu jogo de assumir vários papéis no mundo da arte em direção aos perigos suicidas de sonhos por uma unidade e do auto-espelhamento. Já Brecht recusava qualquer definição prévia, seja por transferir autoridade do artista para o espectador, seja por alguma forma de cooperação artística, mantendo distância da cena da arte. Desenvolveu o aspecto de artista pesquisador.

Por fim pode-se comparar a relação entre vida e política destes artistas. Beuys fundou o Partido dos Estudantes Alemães em 1967, depois a Organização para a Democracia Direta, em 1971. Sua crítica institucional era contundente, e na prática, considerando que aceitava número ilimitado de estudantes para seu curso de escultura na Academia de Dusseldorf, o que lhe valeu a demissão. Tentava ligar arte e vida sob seu conceito de arte expandida nas organizações políticas que criava ou participava.

Diversamente da busca da democratização, da eliminação de hierarquias institucionais ou equilíbrio ecológico desejada concretamente por Beuys, Broodthaers acreditava que não pode haver “nenhuma conexão direta entre arte e mensagem, especialmente se a mensagem é política, sem que se corra o risco de ser queimado pelo artifício”. A arte engajada depara-se com o fato de que apenas “funciona dentro da relação de produção existente que é o objeto mesmo da crítica. Ao artista resta escolhas táticas, manobras territoriais, de um modo que ao menos é possível encontrar um meio autêntico de questionamento”. O poeta Broodthaers transformou o mapa político em um mapa poético.

O Brunch-Museum (1975-1976) de Brecht e Stephan Kukowski [imagens deste trabalho são projetadas no telão] pode ser visto como uma maneira de homenagear Broodthaers que morrera em 28 de janeiro de 1976. As implicações políticas e críticas destas formas de expressão não materiais e não comerciais consistem em um caminho para entrar em uma zona intermediária livre, conquistada por ambos artistas às expensas do reconhecimento. Nesta zona entre arte e política (Broodthaers) e arte e ciência (Brecht) puderam testar os efeitos do acaso, experimentar a vida como um jogo, usar o paradoxo como meio para a compreensão, e por fim inventar uma “linguagem além do silêncio”. Brecht afirma que seu trabalho seria facilitar ou dar a todos, incluindo ele próprio, “a oportunidade de se tornarem mais sensitivos.”

O questionamento de Broodthaers das condições econômicas, institucionais e sociais da arte não ocorreu nunca no campo primordialmente político, mas no plano poético e ficcional. Buscava borrar as fronteiras entre aparência e realidade, humor e seriedade, ou demonstrar esta separação com um foco mais agudo. Com seu museu fictício ele criou uma situação e arcabouço no qual a simbolização poderia ser experimentada. “Com meu museu eu coloquei uma questão. Isso não significa que tenho que respondê-la”.

 

O quarto tópico apresenta a importância de Broodthaers para alguns artistas de hoje. Atribui o interesse destes jovens em perseguir a “correspondência além do silêncio” ao questionamento crítico em detrimento da busca por respostas e à qualidade poética dos trabalhos em detrimento da política. Ele é um ‘artista dos artistas’ e foram tais características que levaram Dorothea a estudar os efeitos e afetos de Broodthaers na arte de hoje. Cita então três artistas: Rikrit Tiravanija, [o próximo palestrante], Ulrike Grossarth e Tácita Dean.

[imagens dos trabalhos de Rikrit, de Grossarth e Tácita Dean]

Rikrit reconstruiu seu próprio atelier de New York na Associação dos Artistas de Colônia, fazendo assim alusão à Sala Branca de Broodthaers. Para ele interessava a participação do público, inclusive sem supervisão, assim delineou um espaço para ação, uma sala que estenderia os limites do Cubo Branco [o espaço tradicional de apresentação da arte], cuja ideologia fôra descrita por O’Doherty.

Ulrike Grossarth construiu uma sala denominada Sala dos Pais (2005) produzindo uma detalhada reconstrução da Sala Branca, dedicada a Duchamp, Magritte e Broodthaers. Em vez de palavras desenhou ferramentas diversas.

Tácita Dean realizou um filme mudo no mesmo porão em Dusseldorf no qual Broodthaers instalou sua Secção Cinema. Hoje o local é depósito do museu, mas as paredes e o teto ainda contam com os números e letras, vestígios da presença do artista.

Além do silêncio dos museus, o trabalho de Broodthaers ainda é um tópico corrente de conversação e correspondência.

(por Beatriz Scigliano Carneiro)

Publicado em 03 de fevereiro de 2006

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