Marcel, 30 - Conferência 3
Stephane Huchet abriu as palestras da manhã. Como lhe fora solicitado que o teor da palestra fosse denso e sério, alertou que leria o texto que preparara para a ocasião.
No Ar: Curto-circuitos alegóricos de Marcel Boodthaers
Broodthaers geralmente é contextualizado por uma associação a Magritte. Isso mostra uma relação interessante na medida em que para Magritte a criação de ilusões se baseia na relação imagem e linguagem e em Broodthaers se trata de uma apropriação do real e da invenção de táticas alegóricas e semióticas.
O poeta Broodthaers entra para as artes plásticas em 1963. Neste ano engessa a base de 50 exemplares de seu livro Pense-Bête [Pense-Bêtes são anotações para lembrar algo que se projetou fazer; memorando, lembrete, memento] como se o gesso se derramasse saindo de um ovo, e a apresenta como obra de artes plásticas. Assim inaugura sua trajetória no por ele denominado campo do adversário: o das artes plásticas, campo em que “todo sucesso da imagem põe a teoria em questão”. Inaugura um uso genealógico da imagem e da palavra, conforme similitudes verbicovisuais. Engessar Pense-Bête [lembrete] entra na arte por um processo de auto-justificação afastada de todo tipo de comunicação, apenas se reproduzindo num circuito tautológico. Propunha como artista,“inventar algo ‘não sincero’”, contrariando a idéia romântica da autenticidade da obra de arte.
A partir de 1964, produz muitas obras com moules (mexilhões). Moule, em francês, significa tanto mexilhão, quanto molde, fôrma. As obras feitas com mexilhões, e também com ovos, são tanto formas completas quanto cascas e remetem a uma lógica que é seu próprio molde e seu próprio modelo. Mexilhão (Moule) faz uma retórica deste jogo verbicovisual. O mexilhão é a figura da tautologia, um ser formal sem se ocupar do valor de verdade das proposições. Moule prolifera sobre todos os suportes, mostrando a infindabilidade da arte pois agora esta é considerada como a coisa mesma, Moule é uma alegoria da própria arte, forma desprovida de conteúdo, objeto manipulável e intercambiável; é uma categoria de objetos e também o próprio sistema auto-reprodutivo da arte como tema de uma prática artística. Interessava-lhe questionar, por meio da organização de táticas sucessivas, a arte e desconstruí-la de dentro, tarefa também empreendida paralelamente por Joseph Kosuth nos EUA.
Imagens destas obras com mexilhões e ovos e parte da exposição Mexilhões, Ovos, Fritas e Carvão, de 1966, ilustram esta parte da palestra.
Seus trabalhos sintetizam o que ele pensava sobre a arte: ela havia capturado a si mesma, o mediatizado e a mediação se recobrem totalmente.
[Huchet em muitos momentos da palestra pede desculpas por inventar e usar palavras que não se encontram nos dicionários de português, como por exemplo “mediatizado”, “infindabilidade”, “verbicovisual”, “mostração”. No entanto, fazem sentido no decorrer da fala, não dificultando a compreensão.]
Broodthaers considerava Mallarmé o fundador da arte contemporânea. Mallarmé, Magritte e Duchamp chegaram diante dos limites da atividade artística, tanto da enunciação quanto da mostração. A poesia de Mallarmé esbarra com a página branca, o espaço, Magritte com a linguagem e Duchamp esbarra com o objeto. A questão é: como mostrar o que não se pode mais dizer, e como dizer o que não pode ser mostrado?
Configura-se assim uma rede de questionamento da arte:
- Duchamp expõe explicitamente um objeto comum, um urinol, e diz implicitamente “Isto é arte”.
- Magritte, na obra Traição das Imagens, desenha explicitamente um cachimbo e escreve explicitamente no mesmo quadro “Isto não é um cachimbo” e implicitamente diz: “Isto é uma representação”.
- Broodthaers, por sua vez, em 1972, na exposição Museu de Arte Moderna, Departamento das Águias, Secção das Figuras B [apresentada na palestra da véspera por Jünger Harten] expõe objetos explicitamente, escreve explicitamente “Isto não é um objeto de arte” e implicitamente diz que “Isto é um objeto que representa a arte”, “Isto é uma representação da arte”. A sua afirmação se dirige não mais a um objeto ou à representação ou não deste objeto mas ao predicado Arte.
Neste projeto Museu de Arte Moderna foi criada uma ficção real de museu, uma “alegoria de um museu na ausência dos originais”, em que Broodthaers assumia o papel de diretor, conservador, cenógrafo e publicitário. No entanto, havia apenas reproduções postais de arte do século XIX, marcando um curto-circuito no tempo ao dizer algo sobre arte contemporânea por uma relação complexa com a história da arte, no caso a pintura do século XIX.
A arte é então uma hiper-mímesis que faz circular signos lingüísticos e visuais de um modo sem precedentes e que mostra todas as facetas do sistema. Sistema que pode ser definido como uma determinada escrita da história da arte que inclui Magritte, Duchamp e também Jeremy Bentham, cujo panopticom Broodthaers associa à invenção do cinema. Os filmes de Broodthaers evidenciam a possibilidade de metáforas sem origem.
[Imagens no telão de stills de filmes do artista]
O universo de Broodthaers pode ser compreendido a partir das exigências de estruturação que as proposições contêm, proposições que se relacionam com o espaço tipográfico e com a construção da frase toda. Entra aqui o conceito de Figura com o qual as equivalências entre palavra, imagem, objeto operam trocas entre si e mantêm uma certa indiferenciação que desestabiliza as proposições com sutileza. Broodthaers estampa com os caracteres FIG. todo tipo de suporte, parodiando a prática curatorial e esvaziando a significação da classificação.
O jogo alegórico com o Museu também se esclarece quando se leva em conta o contexto da emergência da arte conceitual, momento em que, segundo Rosalind Krauss, a arte passou de um regime de funcionamento dos meios (mediuns) específicos para a questão genérica da arte, liberou-se dos meios e inaugurou sua hermenêutica irônica e analítica.
[Projeção de imagens de águias de sua exposição Departamento das Águias]
A imagem desta ave, segundo Rosalind Krauss, alçoou vôo como símbolo da arte. Segundo Jean Pierre Poinsot, a mesma lógica que levou Broodthaers a dizer que seu museu era uma ficção hoje transformou a exposição e o museu em gêneros artísticos plenos, objetos levados a sério ou ironizados em práticas que vão de uma consciência disciplinar ou a simples jogo reprodutivo. Apesar de tudo isso ter antecipado muitas questões contemporâneas, esta desmistificação hoje se encontra muito amenizada pois o sistema sabe viver dela com consciência tranqüila. Isso porém não desmerece Broodthaers, pois ele já havia previsto estes comportamentos institucionais.
[Projeção de slides de Ma Collection, de 1971]
Outro curto-circuito temporal ocorre a partir do texto do catálogo da série Ma Collection de 1971, série destinada a situar as exposições passadas de Broodthaers. Nele se dizia que o catálogo da exposição presente seria usado como parte de uma futura peça de arte testemunhando as exposições de que fez parte. Há uma conjugação de tempo em que um elemento do agora da obra exposta servirá para uma futura retrospectiva na qual obras passadas serão mostradas. Um olhar retro(pers)pectivo sobre suas obras vai sendo criado no tempo presente, remetendo a uma exposição futura. Broodthaers assim mescla estratos temporais. Ao mesmo tempo a atenção a peças isoladas vai cedendo a uma valorização da noção de Décor (Cenário). As exposições seriam então uma seqüência de cenários.
[Imagens de Salle Blanche, de 1975; Peter Rubens; Peintures (L’Art et les Mots)]
A Sala Branca, “grande construção em madeira coberta de palavras”, consiste em uma alegoria na qual as palavras desenham linhas de sentido criando imagens com os valores do mundo da arte. [algumas palavras: nuvens, sol, água, tela, chassis, galeria, película, olho, sujeito, percentagem, ladrão, colecionar, pele, perspectiva, branco, preço, negro, sombra, óleo, brilhante, composição] Apresentava-se como a reconstituição fiel do Museu de Arte Moderna que construíra em sua casa em 1968, no entanto, apenas a morfologia de dois cômodos fora retomada e não os objetos, caixas e postais que ali estavam sete anos antes. Era apenas uma casca formal do lugar do citado Museu.
Sala Branca concentra as dimensões recônditas que a historiadora da arte Patrícia Falguières analisa na tradição das Mirabilia [coisas maravilhosas ou monstruosas] e Memorabilia [coisas memoráveis], formas de conhecimento trazido pelos Gabinetes de Curiosidades [precursores dos museus de hoje]. Ela também apresenta a noção de Topos, ou lugar singular, noção chave para a compreensão de Marcel Broodthaers. Segundo Falguières para se criar um Lugar Discursivo singular, um Topos, uma estrutura tópica, caberia a cada um constituir-se como uma reserva, um tesouro, um estoque de lugares, mantendo a disponibilidade e uma contabilidade que garantisse a localização dos estoques assim como seu crescimento ulterior. “A disponibilidade também é o marco de sua vocação usual e de seu estatuto rigorosamente patrimonial (...) Um lugar tem por vocação assumir a multiplicidade dos dados, (...) reduz a confusão do mundo, é o índice das coisas”. Para ela, o Museu seria o lugar dos lugares, a própria idéia de lugar, pois é um lugar vazio qualificado pelas palavras e pela memória.
Broodthaers é então considerado o gênio tópico por excelência. A dimensão de localização e de crescimento por deslocamento e reiteração de um “lugar” está presente em todo seu trabalho, apesar do artista perturbar tudo isso.
[Imagens dos Décors, 1974]
A noção de Cenário introduz uma categoria que se relaciona ao “medium museu” do século XIX. A descrição de Broodthaers antecipa todo aparato textual que sustenta as exposições de arte de hoje e é uma maneira de intitular e legendar as exposições. Sua busca seria pela dimensão pomposa da decoração, acessório e retórica dos museus do século XIX.
Segundo Poinsot estaria em jogo uma redefinição da autoridade do artista, não como figura única, original, mas como aquele que se ocupa da pertinência pública de seu trabalho, que usa os mecanismos de alienação das obras como signos de suas obras e assim reformula o campo e as figuras de sua autoridade. Talvez aqui Broodthaers mostre-se político, pois a atenção ao uso dos signos faz com que recuse re-mitologizar a arte.
Cada cifra de seu trabalho é um grito silencioso, ávido de significação. Relaciona-se assim com a alegoria descrita por Walter Benjamin, com o “jorro de imagens” separadas da significação. Ao mesmo tempo a ironia e o humor levam a Roland Barthes, as imagens formam correntes flutuantes de significação mostrando que “a escritura está no ar”.
(por Beatriz Scigliano Carneiro)